domingo, 23 de abril de 2023

Supertramp: sobre dois vídeos de shows de 1983, que merecem lançamento oficial


Um dos pôsteres da turnê de 1983
Por Luciano Teles |

Posso dizer que o disco Paris mudou minha cabeça. Desde antes de eu ouvir o álbum todo. Antes de tê-lo gravado em fita cassete, escutávamos o que dele era tocado no rádio. Era 1981/82. Eu tinha por volta de 10/11 anos. Ainda me recordo do impacto de Dreamer, The Logical Song e, principalmente, Fool´s Overture. Das três, só sabia o nome da primeira. Paris me mostrou a diferença entre uma gravação ao vivo e a de estúdio.

Quando gravei o disco em fita, passei a escutar direto. Em casa ou no carro, aquela fita virou parte inseparável de mim. Eu não sei a razão, mas, mesmo sem saber se o Supertramp era pop, progressivo ou o que fosse, para mim, era uma música completamente diferente. O principal: um som muito, muito bom de se ouvir. Elaborado e difícil de tocar ao violão, instrumento que eu aprendia, na época. Mas de fácil assimilação, mesmo as mais elaboradas. A separação das músicas entre as vozes de Rick Davies e Roger Hodgson aumentava a curiosidade em torno da banda, claro. E, sim: faltava ver a banda tocando. Faltavam imagens.

Até que, em 1987, meu irmão chega de Manaus, onde morava, com uma fita VHS. Com gravação de partes de um show da banda, em Toronto, na noite de 24 de agosto de 1983, exibido em um especial da TV Manchete. Exatamente da turnê sobre a qual escrevo. Como erroneamente anunciado no programa, esse show pode ser encontrado na internet como tendo sido em Montreal e Los Angeles. Não sei explicar, mas de cara eu percebi algo diferente entre o que eu via, naquele momento, e o que eu ouvia em Paris. Um som mais aberto, mais encorpado, talvez? Pode ser. Influência de ter imagens, finalmente? Era uma possibilidade. Mas, como, se a banda era a mesma?

Letreiro dos vídeos, com os músicos convidados
  
A banda era a mesma. Mas com dois músicos multi-instrumentistas e convidados: Scott Page (saxofone, flauta, percussão, guitarra e vocais) e Fred Mandel (guitarra, teclados, sintetizadores e vocais). Ambos com histórico de bons serviços prestados a outros artistas. Mandel trabalhou com Alice Cooper, Pink Floyd, Queen, Elton John e até o Anthrax (hã?!?). Page tem trabalhos registrados, também com o Pink Floyd, e Toto. Além de trabalhar com produção e tecnologia de áudio e vídeo, assessorando um grande número de nomes do pop-rock.

Ter dois músicos tão versáteis deu uma liberdade de ação muito grande ao Supertramp. E a possibilidade de fazerem, ao vivo, partes instrumentais que foram gravadas para os discos, mas que não poderiam ser executadas no palco. Exemplo: em Crazy, Roger toca piano. Mas, para alguns momentos da música, ele gravou fraseados de guitarra. O mesmo em The Logical Song (refrão). E agora? Com músicos convidados, a tarefa ficou bem mais fácil e viável.

Acredito, inclusive, que o mais aliviado com o auxílio foi Hodgson. Ele, que entrou para Supertramp tocando baixo, já era guitarrista e tecladista, além de cantor, claro. Agora, tinha colegas com quem poderia dividir a responsabilidade por alguns dos instrumentos ao vivo. Além de tudo, Page, tendo o sopro como ofício principal, pode trabalhar bastante com Helliwell. Enfim, ele e Mandel puderam fazer partes específicas de algumas músicas, aproximando as versões ao vivo do que foi colocado no disco, nas gravações de estúdio. Hoje, vendo tudo isso nos shows disponíveis da turnê de 1983, Munique (23/11/1983) e Toronto (24/08/1983), percebo que essa era a resposta para a minha indagação de 1986.

Scott e Fred em fotos do programa da turnê de 1983
Um dos maiores exemplos dessa liberdade vem logo na música de abertura dos shows. Crazy tem Hodgson no vocal principal e ao piano. Com Scott na banda, John e Rick não tiveram de tocá-las num teclado. A guitarra não é tocada durante toda a música, apenas no refrão, e em pequenas intervenções. Mas, sem ela, a canção perde muito. E a guitarra de Page está com o peso certo para os fraseados. Nas partes em que não toca guitarra, toca percussão. Mandel permanece nos teclados. Ambos colaboram nos vocais. Observação minha, depois de muito escutar Crazy: é uma música tão boa, tão peculiar, que, da mesma forma como abriu os shows de 1983, poderia muito bem fechar as apresentações. Caso não tivéssemos Crime Of The Century, logicamente. Principalmente pelo arranjo de sua finalização – no disco, ela termina em fade out.

Cenas de Crazy: Mandel aos teclados e Scott com chocalho, guitarra e saxofone
A seguir, Ain´t Nobody But Me. Música que me pegou pelos ouvidos, ainda no disco Paris. E é impossível não escutar o “Bonsoir Paris! Et bienvenue a une soiree avec Supertramp! Nous sommes très heureux de jouer a Paris” (Boa noite, Paris! E bem-vindos a uma tarde com o Supertramp. Estamos muito felizes por tocarmos em Paris), dito logo após sua execução, no disco ao vivo gravado na capital francesa. É o “preço que se paga”, por ouvir muito um álbum, até que ele faça parte de sua massa cinzenta. Aqui, uma observação: como é a primeira música, nos dois shows, em que Roger começa a tocar guitarra, percebi como que ela está num volume bem alto, e ele com uma vontade e entrega, como poucas vezes vi em apresentações anteriores - BBC ou Paris, por exemplo. Incluindo certos gestos e posturas. Quase um guitar hero. Mandel permanece nos teclados, enquanto Page fica na guitarra, mas já com um saxofone pendurado, pois também toca este instrumento.

Roger e Scott tocam guitarra em Ain´t Nobody But Me
A seguir, John Helliwell assume seu tradicional papel de cicerone, mestre de cerimônias da banda, pois sempre foi o que mais conversou com o público. Aliás, além de sua alta musicalidade e competência, muito de sua entrada na banda se deveu, também, ao seu desprendimento e bom humor. John relata que foi levado por Dougie Thomson a um ensaio. Os dois já se conheciam e a integração musical com o grupo foi imediata. Por volta de 1980, em uma entrevista, ele disse que, após tocarem, ficou um “silêncio de eternos 20 segundos”. Até que ele soltou uma piada velha. Todos riram e o convidaram a voltar no dia seguinte. “Só que, até hoje, não recebi convite para entrar na banda. Então, vou gravando discos, excursionando... e é isso hahaha”.

Em Munique, ele fala que o Supertramp como um todo, expressão bastante usada por ele, ama Munique e a Bavária, em geral. Que, na noite anterior, ele havia tomado muitas cervejas da região e tal. E que, naquela manhã, acordou sentindo falta de seu Breakfast In America. Já em Toronto, Canadá, país com o maior número de fãs da banda, disse que tinham estado fora por muito tempo. E que, sempre que estava distante, ele realmente sentia falta de... adivinhe: Sim, “meu Breakfast In America”. As plateias adoram esse tipo de coisa. Antes de acharmos repetitivo – pois temos dois shows filmados a nossa disposição -, devemos nos lembrar de que, em uma turnê, o show é como uma peça de teatro: um roteiro básico, posições marcadas no palco e, se um caco ou improviso cai bem, tende a ficar pelo resto da excursão. Será que, no Brasil, nos shows do grupo, no Hollywood Rock, no Rio e em São Paulo, ele falou em feijoada, caipirinha etc? Agora, fiquei curioso rsrs

Nota do tipo que não vale nada, mas acrescenta cultura inútil: no anúncio da segunda edição do festival Hollywood Rock, em 1988 (a primeira havia sido em 1975), eram mostradas imagens das bandas. Pelo que me lembre, as do Supertramp foram retiradas deste show de Toronto. Ainda na sólida base do “se não me engano” (sim, risos rsrs), além das imagens de Rick e Roger em close, foram mostradas suas faces enquanto cantavam sobre o vídeo de Rudy. Se alguém tiver lembrança exata ou correção a fazer, será bem-vindo.
 
As imagens usadas no anúncio do Supertramp no Hollywood Rock 88
Vem Bloody Well Right e, mais uma vez, Scott Page e Fred Mandel mostram sua versatilidade e disposição. Mandel toca guitarra e oferece uma base, o que ajuda Roger a ficar mais solto, já que sola com o mesmo instrumento. Já Scott Page, sempre ele, começa tocando um sax (ainda fico na dúvida se baixo ou barítono), na introdução, e, logo depois, pega um tenor e se dirige à frente do palco, para fazer dueto com John Helliwell e vocais. Ele ganha mais espaço, pois também toca algumas linhas. Isso mostra como que seu som casou bem com a banda e, claro, como que John foi extremamente generoso, ao lhe conceder mais tempo em suas participações – no que Page corresponde acima do esperado. Os dois, aliás, dividem o mesmo tipo de bom humor. Com direito a piadas internas, pelo que se pode perceber (entradas nas músicas etc).

Toda a movimentação dos integrantes durante Bloody Well Right
“It´s Raining Again não deve ter muita coisa diferente, de Scott ou Fred”, pensei. Ledo engano. Na primeira cena, em Munique, Page já me aparece com dois saxofones pendurados. Que ele toca em diferentes momentos da música. Na cidade alemã, aliás, foi uma das que mais contaram com participação do público, cantando e batendo palmas. O solo ficou por conta de Rick, na escaleta – o que, para mim, foi novidade, pois eu não sabia desse detalhe. Posso estar enganado, mas essa música ganha muito em expressividade, ao vivo. Muito mais do que a gravação do disco.

It´s Raining Again: Scott com dois saxofones; Rick tocando escaleta

Put On Your Old Brown Shoes traz Rick ao Wurlitzer tocando o riff (do qual gosto muito) e, Fred Mandel, ao piano de cauda, fazendo a base e, na introdução, aquele som nas teclas mais agudas. Essa música me chamou a atenção. Porque a letra mostra, claramente, um recado de Rick para Roger. Dentro do vai e vem de farpas de ...famous last words..., me surpreendeu ver como que Roger dança, ao som dela. Isso é notável na banda. Não importava a mensagem da música (outras do naipe foram tocadas na turnê): na hora do show, na frente do público, o profissionalismo falava mais alto e a dedicação era total, para que tudo saísse bem.

Put On: Mandell ao piano, Bob com pandeiro e movimentação do público e da banda
Em Put On..., John toca outra escaleta, para fazer o som agudo, bem presente, no início. Na primeira parte da música, Bob Siebenberg toca apenas pandeiro. Começa com a bateria logo a seguir. Confesso que eu não gostava de Put On Your Old Brown Shoes. Mas a versão ao vivo conquistou meus ouvidos. Ela ganha uma dinâmica e uma evolução muito boas, no palco. Scott toca sax e faz vocais auxiliares.

John permanece com a escaleta em mãos, pois é com ela que faz o solo da introdução de Hide In Your Shell. Simplesmente a música do Supertramp de que mais gosto, desde Paris e, principalmente, quando a vi, ainda na fita VHS, trazida pelo meu irmão. Tanto, que logo peguei o violão para tentar tocar. Depois, passei para o piano, dentro do arremedo de pseudo-talvez-quem sabe-conhecimento que eu tenho do instrumento. O fato é que, mesmo sem você saber da dramática letra, o drama começa já com a interpretação de Roger, ao vivo.

Hide In Your Shell: John com escaleta e Trampettes em cena

Aliás, sempre falam de Dreamer, como sendo um marco na forma de tocar teclado. Aquele toque constante, que marca a harmonia e o ritmo. E falam que Roger tentou repetir a fórmula em Lady (Crisis? What Crisis? – 1975). Entretanto, se percebi bem, em Dreamer, Hodgson apenas acelerou o que pode ser sua marca registrada, já que a mesma maneira de tocar pode ser observada em Hide e outras. Só que mais cadenciada.

Do show de Munique, alguns detalhes. Rick balançando a cabeça, ao som da música. É da época de Crime Of The Century, quando os dois ainda compunham juntos. Ao final da música, Roger empurra o suporte do microfone com a cabeça e desativa um botão do Wurlitzer, com uma expressão um pouco estranha. Talvez isso já fosse sinal do que aconteceria depois, em Fool´s Overture – mais abaixo.

Ao longo de Hide, aparecem os Trampettes, que nada mais são do que um grupo de roadies, talvez convidados ocasionais, que, fantasiados, farão a segunda voz em falsete, para o acompanhamento, já na parte final. Há desde pessoas com vestes normais, até fantasiados de palhaços e um Chewbacca – ou coisa que o valha. A ideia partiu de Roger, ainda na turnê de 1979, como um bom efeito visual e dinâmico. E, pelo humor, um contraste com a letra introspectiva da música. Os Trampettes aparecem em outros momentos, como em Fool´s Overture.

Qual não foi minha surpresa ao ver, no show de Munique, o público acompanhando, com palmas, a dramática e relativamente lenta Waiting So Long? Vale notar que ela vem após Hide In Your Shell, que não é exatamente animada. Na segunda estrofe, as palmas diminuem, mas, como a música ganha um ritmo mais marcante, elas voltam. Ao longo de sua execução, a guitarra de Roger, com efeito bem pesado e em volume alto, vai ganhando presença, acrescentando dramaticidade, até que explode num solo de dois dos mais belos minutos da música pop. Mais uma vez, Roger se mostra como que desabafando, jogando para fora algo que ele queria falar, mas que acaba expressando pelas notas. Scott o acompanha muito bem, marcando a intensa base com fraseados precisos.

Waiting So Long: público em palmas e Roger como que desabafando
 
E vem Give a Little Bit. O grande hit de Crisis? Roger escolheu este momento para, em cada show, marcar o anúncio de sua saída. O que pode ter confundido muita gente, no vídeo do show de Munique, foi ele ter dito que, 14 anos antes, ele fez sua primeira apresentação com a banda (ainda sob o nome Daddy) exatamente ali, em Munique. E que, novamente naquela cidade, ele fazia, naquela noite, seu último show com o Supertramp. Por muito tempo, eu também pensei assim. Mas a internet nos trouxe mais informação, assim como o acesso a livros e itens de memorabilia. Aliás, programa e diversos sites mostram, não só que haveria mais shows, nos EUA e no Canadá, como precisou ter um no dia seguinte, na mesma Munique, dada a grande procura por ingressos (que não consta no roteiro de shows do programa). E, devido ao já citado profissionalismo, a banda está perdendo um de seus principais integrantes, deixando todos incertos de seu futuro, como Supertramp, e, no caso de Roger, como artista solo, mas apresentando um show perfeito.

Antes de Give A Little Bit, Roger anuncia sua saída, enquanto um resignado John observa

Em From Now On, mais uma mostra do quanto a versatilidade de músicos convidados pode melhorar o que já é muito bom. Nas turnês anteriores, John fazia o solo com sax tenor e acompanhava o de guitarra com sax alto (vide o DVD de Paris). Aqui, ele e Scott fazem um duo de escaleta, para acompanharem o solo de Roger, em sua guitarra de dois braços (utilizada apenas nesta música).

From Now On: John divide escaletas com Scott, enquanto Roger toca a double neck
  
Em The Logical Song, novamente Scott reproduz um arranjo do disco, que não era feito ao vivo por Roger, até então, por este sempre estar ao teclado: o acompanhamento da guitarra, no refrão e em algumas outras partes. Interessante notar que, em Toronto, ele fala, antes da música: “Àqueles que estão por aí, perguntando o que, afinal, está acontecendo”. Não sei a razão dele ter dito isso. O fato é que a forma como ele tocou, na cidade canadense, foi bem mais incisiva.

Goodbye Stranger foi uma música que conheci vendo o show de Toronto. Estranhei, mas gostei. E Roger vem com mais um de seus solos exatos e altamente criativos. Mais uma vez, Scott o acompanha na guitarra. No solo, pega o pandeiro. Vou evoluir essa observação em outro post, sobre Roger e a guitarra. Mas é de se notar que, em determinado momento do solo, logo no início, ele começa com um dedo num traste e troca de dedo, mantendo a nota. Guitarristas normalmente exaltam essa técnica, quando utilizada por Steve Vai, em uma de suas composições. Posterior a Goodbye, talvez? Claro que eu me pergunto sobre onde que Roger viu essa forma de tocar ou se tentou por si próprio. De qualquer maneira, é notável e não muito vista. Aliás, o arranjo para o final de Goodbye foi outro que ficou muito bom, já que, em estúdio, termina em fade out.

Em Toronto, antes de Dreamer, eu destaco a brincadeira de John Helliwell: Ele se senta ao Wurlitzer e começa a tocar a famosa introdução. E não sai dela. Até que Scott e Fred aparecem, como que ao comando de Roger, e retiram o saxofonista do assento. Este, num bem-humorado e perfeito timing, simulando um ímpeto de resistência, ainda dá um último toque aleatório no instrumento. Roger ri e pergunta à plateia: “Vocês querem ouvir a versão correta? Okaaay!” O público se amarrou!
 
John fingindo começar Dreamer e sendo retirado, enquanto Roger dá risada

Rudy vem a seguir, com toda sua magnitude, mudanças de andamento, tom, casa, apartamento e tudo o mais que puder. O vídeo do trem acrescenta a tensão que já reina, na instrumentação da parte em que é projetado. Mais uma vez, Scott toca guitarra, acompanhando Roger, enquanto este executa as partes de maior destaque, na ponte. Se repararmos bem, a base que ele faz acrescenta muito à música. Fred permanece nos teclados.

A épica Fool´s Overture começa com uma melodia bem simples, ao piano. Esta primeira parte termina da mesma forma, discreta. A seguir, muda completamente, passando pelo discurso de Winston Churchill (“We will never surrender!”) e seguindo até seu famoso riff, que foi a parte que mais me impactou, quando a ouvia, ainda criança – sem sequer saber que havia o Supertramp. Antes de tocá-lo, porém, uma rara manifestação de Roger, em direção à plateia, em resposta ao burburinho, que sempre precede essa parte.

Aqui, uma observação aleatória - e totalmente sem linguajar musical exatamente técnico: esse riff é genial. Mas a preparação foi que sempre me chamou a atenção. Porque esta parte, tocada nas notas baixas, que anunciam a sequência principal, é iniciada, não na nota mais grave, digamos, o que seria usual. É na mais alta. Sutileza vital, eu diria. O baixo de Dougie faz um acompanhamento simplesmente espetacular! A bateria de Bob idem. Os dois embarcaram na ideia de que, mesmo numa peça tão única, menos pode ser mais.

Assim que John Helliwell começa seu primeiro solo, uma cena para a qual eu não tinha atentado. Tudo porque, quando comprei o DVD de Munique, estava numa fase de deixar rolar e fazer coisas de trabalho. Graças ao pessoal do site consultoriadorock.com, pude ver essa cena mais do que marcante: Roger chora. Roger simplesmente passa a mão no rosto umas quatro ou cinco vezes, enxugando lágrimas. Penso em tudo que está pela cabeça dele. Foi em Munique, sua primeira apresentação com o Supertramp. E aquela seria sua última vez com o Supertramp, na mesma cidade. Disso que eu falei, em Hide In Your Shell. Dessas sensações. E tudo aflorando em pleno show, em diversos momentos.

Fool´s Overture me tirou algumas dúvidas, que passei a ter após ouvir Paris. Coisa simples, sobre quem estava tocando qual teclado. Dessa segunda parte em diante, então, Rick assume o piano, e Roger permanece a bordo do sintetizador ELKA. Na parte cantada, para minha surpresa, Hodgson não toca nenhum instrumento.

A música segue seu curso, até desaguar na parte cantada final. Aí, mais detalhes: Rick passa do piano para o sintetizador Oberheim, Scott divide microfone com John, ambos com clarinetes (Fred está aos teclados) e, mantendo a tensão, Dougie e Bob não desembestam em desabalada carreira, o que seria natural, já que a música entrou em um momento mais forte. Permanecem com a mesma tocada de antes. Ou seja: a música atinge seu ápice, quer “correr”, mas eles demoram a mudar a marcação. “Prendem” a canção. Essa tensão dá um desenho mágico a toda a composição.

Como tradicionalmente ocorria, o acorde final conta com a encenação de John sendo um maestro e comandando a bateria de Bob, com todos esperando o sinal do saxofonista, para finalizarem a consagrada Fool´s Overture. E a primeira parte do show. O bis viria a seguir.

Fool´s: Roger interage, chora e, ao final, John encerra a música, como um maestro
  
Tanto em Munique, quanto em Toronto, a volta para o bis é festiva. Todos gesticulam bastante para a plateia. Inclusive Rick, ainda que de forma mais contida. Ele é assim. Mais tímido. Mais introspectivo. Roger agradece em alemão: “Munique! Alemanha! Bavaria! Fantástico! Fantástico!”.

E a gaita de Rick anuncia School. Que tem seu começo modificado, como pode ser visto nos dois shows. A guitarra de Roger entra um pouco antes. Mudança sutil, mas que mexe com a dinâmica da música. As presenças de Fred e Scott são fundamentais, em School. Os arranjos ficam muito mais ricos, com John e Rick tendo mais liberdade, por exemplo. E Page se mostra um verdadeiro operário.

No primeiro solo de piano, Fred, que já tocava a guitarra, com ela ainda a tiracolo, ocupa o Wurlitzer, até então com Rick. Que vai para o piano. E ambos tocam o solo, em uníssono. Enquanto isso, Scott, que tocava saxofone, segue com o instrumento até John, já levando a flauta. Ele a toca, enquanto John toca o saxofone. Em Paris, vemos John tocando o sax alto (salvo engano) ou sax. Ou seja: sem mais opções, era um ou outro.

Quando chegam nos versos “Don´t do this, don´t do that”, ambos tocam sax, o que reforça os graves do piano de Rick e da guitarra de Fred (já de volta ao seu lugar), enquanto Roger foca em efeitos com distorção e wah-wah. Logo depois, Scott deixa os sopros e assume o vibraslap*, instrumento de percussão. Resumindo: em pouco tempo, Fred tocou guitarra, assumiu o Wurlitzer e retornou ao seu local, novamente com as seis cordas. Já Scott, em menos de um minuto, tocou três instrumentos, também se deslocando pelo palco. Impossível, assim, não sugerir que se compare as execuções de School em Paris com as de Munique e Toronto e ver como a canção ganhou força além da que já tinha, naturalmente.

A saga de School, com grande movimentação de Scott, com o vibra slap, abaixo, à direita

E chega o apoteótico final do show, sempre com Crime Of The Century. A curta letra resume todo o espírito do álbum de mesmo nome, cujas canções permearam todos os shows do Supertramp – revolta contra o sistema escolar, político e social. Sintomaticamente, todos os shows tiveram, ao menos, quatro músicas do disco que representou a virada da carreira da banda. Que deu a seus músicos, à época e já na formação clássica, o respeito, a fama, já algum dinheiro e, mais importante, a demanda por mais e mais shows.

O vídeo de Munique mostra Rick sentado ao piano, observando as teclas, por longos dois ou três segundos. Até que, sutil e gentilmente, toca a primeira nota. Seguem-se os primeiros acordes e versos. A plateia vibra. Como se ninguém ali soubesse o que viria. É o impacto que essa música gera. Implacável. A música se desenvolve. Ganha corpo. Fred toca guitarra. John completa a base no Oberheim.

Não vejo Scott. Deve ter ido fazer um café. Impossível, ele ficar sem fazer algo.

Quando começa a repetição do riff clássico do piano, o vídeo começa a ser projetado. À grade, da capa do disco Crime, está ligada a corda da capa de ...famous.... Secamente cortada pela tesoura, da mesma arte. Se, no início do show, tínhamos o malabarista sobre a mesma corda, também seccionada pelas lâminas, para que tudo começasse, aqui, o corte finaliza a apresentação.

O que nos dá a certeza de que, ao menos em vídeo, dificilmente teremos a imagem com a saudação final dos músicos. Porque sempre a projeção do vídeo toma a tela.

Cenas do vídeo do final de Crime Of The Century
  
Se minha opinião valesse para alguma coisa, diria o seguinte: o Supertramp perde em não lançar oficialmente esses dois shows. Ou, no mínimo, uma compilação, sob o nome de Turnê 1983, ou algo que o valha. Porque a performance da banda é simplesmente estupenda! Por tudo isso que mal e longamente escrevi – espero que não prolixamente. Tenho a certeza de que, apesar de ser o canto do cisne da formação clássica da banda, foi seu auge ao vivo. Não só pelos músicos originais já estarem mais do que afiados, mas pela escolha certeira de seus dois convidados. Tudo ficou mais rico: desde o bom humor no palco, que certamente ajudou a dissipar um pouco do tom de despedida e tal, até a execução das músicas, cujos arranjos originais foram amplamente explorados e extremamente enriquecidos.

Deixar esse material (áudio e vídeo) fora do alcance do público, sem ser disponibilizado, de forma bem trabalhada e oficial, é tiro no pé. E, de tiro no pé, já bastou a separação da banda. Nem Roger experimentou o mesmo êxito, em sua carreira solo (ainda que diga que não vise apenas isso), nem o Supertramp repetiu seu sucesso de outrora. Ao contrário: lançamento após lançamento, a banda se tornou o grupo de acompanhamento de Rick, para suas músicas. É duro, afirmar isso. É difícil. Sou muito fã da banda. Mas é a realidade. Assim, se não teremos mais a reunião do grupo original, para novos trabalhos, que preciosidades sejam disponibilizadas oficialmente, para saciar o público, sempre ávido por lançamentos, e manter a chama da banda acesa. Afinal, como se diz entre os fãs de outras bandas dos anos 60/70: ninguém fica mais novo nessa história.

Outro dos diversos pôsteres da turnê de 1983

 * Vibraslap - Baseado no secular instrumento utilizado a partir do osso da mandíbula de animal, geralmente a do cavalo, o Vibraslap é um instrumento de percussão constituído por um pedaço de metal semi-rígido (dobrado em forma de U), que liga uma bola de madeira a uma caixa oca de madeira com "dentes" de metal no interior. O percussionista segura a estrutura de metal em uma mão e golpeia a bola (geralmente contra a palma da outra mão). A caixa funciona como um corpo de ressonância de um mecanismo de metal colocado dentro de um número de pinos ou rebites vagamente presos que vibram e chocalham contra a caixa. O instrumento é uma versão moderna do maxilar.

O Vibra-Batida foi a primeira patente concedida à empresa de fabricação de instrumentos de percussão latina (Latin Percussion).

 
O vibraslap: segura-se pela dobra da haste metálica e bate-se na esfera

O inventor do Vibraslap foi Martin Cohen. Cohen foi orientado pelo percussionista Bob Rosengarden: "Se você quiser fazer algum dinheiro, faça uma mandíbula que não quebra." Sobre o processo de inventar Cohen lembra: "Eu nunca tinha visto um maxilar antes, mas eu tinha ouvido falar de um em um Cal Tjader álbum. Descobri que era um crânio de animal que você iria atacar, e o som que vem dos dentes chocalhava nas partes soltas. Então eu peguei esse conceito e inventei o Vibraslap, que foi a minha primeira patente”.

Você pode ouvir o vibraslap na introdução de Sweet Emotion, do Aerosmith, e em diversas outras músicas do pop-rock.

Saiba mais AQUI

sábado, 22 de abril de 2023

...famous last words... – o disco

 por Luciano Teles

 

...famous last words... último trabalho com a formação clássica


Como prometido no outro post, para falar do último trabalho com Roger, temos de voltar algumas casas. Ou alguns discos.

Even In The Quietest Moments (1977) fez a banda voltar aos trilhos da composição, depois do desapontamento com Crisis? What Crisis? (1975). Meio pop, meio progressivo, tudo estava Ok. Os ares estavam diferentes, porém. Literalmente. Desde a época de Crisis?, a banda morava em Los Angeles. Isso até dificultou as gravações, iniciadas na cidade da Califórnia, mas terminadas em Londres. De novo, é Roger quem resume a situação: “Muito sol, pouco estúdio”. Em Even, porém, a banda retomou o controle, mesmo que ainda morando nos EUA, e fez um álbum mais... Supertramp, digamos. Como dito, voltou ao progressivo pop característico do grupo. Dois milhões de cópias vendidas em seis semanas e uma turnê que alcançou 600 mil fãs podem respaldar essa ideia.

Em 1978, os integrantes ingleses da banda (Bob Siebenberg é norte-americano, de Glendale, Califórnia) já tinham se habituado de vez a Los Angeles e ao modo de vida americano. Tanto, que se sentiram à vontade para falar sobre alguns hábitos do país e assuntos correlatos. Assim, o brilho do sol californiano foi traduzido num dos discos mais perfeitamente pop de que se tem notícia: Breakfast In America. Sim: o progressivo foi praticamente colocado de lado. Uma pitada aqui, outra ali, mas a leveza de composições dominou o trabalho – o que não elimina os detalhes na elaboração dos arranjos. Nem recados atravessados nas letras. Afinal, estamos falando de Supertramp. E de Roger Hodgson e Rick Davies.

 
Ideia de corte foi mantida nos selos dos LPs


Breakfast In America (1979) tem a capa com itens de cozinha imitando os prédios de Manhattan, a atriz Kate Murtagh (29 de outubro de 1920 – 10 de setembro de 2017) vestida de garçonete e posando como a estátua da Liberdade, design bem chamativo, bem-humorado, em cores claras e com fontes de letras mais descrontraídas. Mas... bem, as desavenças já se faziam mais notórias. Rick não gostava da música título do álbum – composta por Roger ainda adolescente, sonhando em ir para a América, sob o efeito das imagens dos Beatles em sua primeira passagem por lá. E, sobre as desavenças com o colega, mandou um recado, em Casual Conversations, intitulada, inicialmente, como You Never Listen Anyway. Uma indireta mais que direta. Que Roger devolveu, em Child Of Vision, que fecha o álbum.

A turnê de promoção de Breakfast rendeu um dos melhores discos ao vivo de que se tem notícia: Paris. Que, graças aos céus, em 2012, nos foi trazido também em imagens, com o lançamento, em DVD e Blu-ray, de compilação dos shows da gravação do álbum, sediados no Pavillon de Paris. As fitas foram encontradas pelo baterista, Bob Siebenberg, no celeiro de sua fazenda (Oiiii???!!!), na Califórnia. O box foi completado com dois CDs, contendo todas as músicas do set list.

Turnê em 1979, preparação e lançamento de disco ao vivo em 1980, era hora de um descanso. Assim, o processo de individualização dos integrantes, que começara após o sucesso de Even..., com cada um já formando família, tendo filhos etc, ganhou força. Todos, porém, ainda moravam em Los Angeles, relativamente próximos um dos outros.

Menos um: Roger.

Que preferiu se retirar para as montanhas. Foi para Nevada Country, a seis horas de distância de LA, ao norte da Califórnia, onde construiu sua casa e estúdio. E começou a pensar seriamente em sua carreira individual.

A distância entre Los Angeles (banda) e Nevada County (Roger)


Todos os integrantes chegaram a construir um estúdio em suas casas. Em diferentes proporções, permitiam desde gravações de fitas demo (ainda fitas, naquele tempo) até de um álbum, propriamente. Mixagem e outros refinamentos poderiam ser feitos em estúdios maiores. Se os outros três não chegaram a pensar em um disco solo, Roger Hodgson e Bob Siebenberg pensaram. E gravaram. Roger chegou a fazer certa publicidade, inclusive. A gravadora que o aconselhou a reter a promoção, por causa da turnê de ...famous last words... Ele aproveitou o tempo para rever o trabalho. Mas apenas Roger pensou em sair do Supertramp. Por Bob, ambas as carreiras eram perfeitamente conciliáveis.

Bob conta, em entrevistas publicadas em seu site pessoal e em livros, que chegou a ter o disco pronto. Mas que a gravadora o advertira de que o trabalho carecia de um verdadeiro hit. Queiramos ou não, um disco tem de vender. E nada melhor para isso do que um sucesso que pegue os ouvintes pelos... bem... é... pelos ouvidos. Então, na época dos ensaios para a turnê, ele se dividia em compor e gravar, até as sete da noite. Às oito, já estava ensaiando com o Supertramp. De qualquer forma, ele manteve seu trabalho à parte do que fazia com o grupo. Mas não pensava em deixar a banda. Enquanto Roger ansiava por partir.

Com a devida licença para o trocadilho, tão intencional quanto infame, pode-se se dizer que partir seria apenas confirmar o que todos sabiam: o grupo estava partido. As tensões que cercaram a gravação de ...famous... contrastam com algumas entrevistas de Roger. Ele esperava que o fato de cada integrante ter seu estúdio favorecesse o aparecimento de novas vertentes musicais, com todos trazendo ideias. Ainda que ele e Rick fossem os principais compositores da banda.

 
Mesmo no fim, iconografia permaneceu marcante


Mas as coisas pegaram outros caminhos. A seis horas de Los Angeles, com esposa, filha de dois anos e filho recém-nascido, ele não queria se deslocar e ficar longe de casa. Já Rick pensava o contrário. Achava que, estando a maioria em Los Angeles, as gravações deveriam ser lá, em seu estúdio caseiro. Enquanto a Terceira Guerra Mundial se desenvolvia, os três outros membros queriam apenas ensaiar e gravar. Assim, depois de uma frustrada tentativa de agenda, com Roger e Rick se deslocando, um ao estúdio do outro, ficou definido que as gravações ocorreriam em seus próprios estúdios. Cada um gravaria suas músicas e os arranjos para as composições do outro. Usando uma expressão atual, os outros três que lutassem.

E assim foi: John, Dougie e Bob acabaram se deslocando para cima e para baixo no mapa. O que, em parte, era bom, pois experimentavam novos ares. Mas sempre me pego pensando na logística necessária, em termos de equipamento etc. John e seus delicados instrumentos de sopro. Cases protegem, Ok. Dougie, seus baixos e seus amplificadores, se não tinha um em cada ponta da corda. Cases, Ok. Mas já dão trabalho. E lá vinha Bob e sua bateria – que não tinha exatamente poucas peças... Mesmo uma em cada estúdio já daria trabalho.

Aliás, ao ouvir novamente o disco, senti falta de Bob Siebenberg “não tocar bateria”. Porque, ao longo do trabalho, ele apenas marca o tempo. Achei compreensível, porque, dentro da minha limitação, não vi, nas composições, espaço para que ele trabalhasse a bateria da mesma forma como fez em Dreamer, por exemplo. Fiquei com isso na cabeça, pensando se tratar apenas de uma impressão. Qual não foi minha surpresa, quando vi, em outra entrevista publicada em seu site, o baterista confirmando que, sim, não houve espaço para um trabalho mais elaborado nas peles e pratos. O que é uma pena.


 
O DISCO

Muito se fala sobre ...famous last words... ser o último disco com a formação clássica do Supertramp, as músicas já não serem tão boas, ser um disco fraco etc etc e, por fim, mais um etc. Para não cair em lugar comum, resolvi ouvir toda a discografia do Supertramp até ali. Incluindo os dois primeiros discos – Supertramp (1970) e Indelibly Stamped (1971). Claro que Crime Of The Century (1974), Crisis? What Crisis? (1975), Even In The Quietest Moments (1977) e Breakfast in America (1979) receberam mais atenção. Fui ainda mais meticuloso ao escutar ...famous... Que, em outro trocadilho infame, poderia acabar sendo chamado de ...infamous..., tal a negatividade das críticas que li sobre a obra.

Sem analisar de forma musicalmente exata, até porque não tenho conhecimento teórico para tal tarefa, resolvi apenas comentar algumas coisas sobre as músicas. Sobre o disco, se lhe falta uma, quem sabe?, unidade, que ainda era buscada em outros álbuns, a qualidade é mantida. Sim: ouvimos e podemos falar que se trata de um disco do Supertramp. Principalmente porque a banda, com a formação clássica, era totalmente distinta, dentro do universo musical. Era o tipo de grupo cujas canções se ouvia e já se podia sentenciar: é Supertramp. Essa identidade musical, praticamente uma impressão digital “auditiva”, é para poucos.

O que eu me permitiria ousar a dizer é que, ao mesmo tempo, exatamente por ser uma obra claramente Supertramp, falta-lhe algumas marcas típicas da banda. A divisão fica clara. A falta de unidade se reflete, não tem jeito. Estão lá as músicas sobre a vida e o plano espiritual, de Roger – algumas em tom mais reflexivo, outras mais pop. Também estão lá as músicas de amor e sobre o cotidiano, de Rick. Mas, principalmente, para quem já sabia dos recados musicais entre si, as mensagens de um para outro ficaram mais do que claras. Com o perdão da piada, mas só faltaram um chamar o outro de “feio, bobo e chato” em pleno disco.

 
Foto de página do programa da turnê de 1983


Eu tinha 8 anos, quando do lançamento de Breakfast, e 11, quando ...famous... chegou às lojas. Do primeiro, me lembro da execução maciça da música título, Take The Long Way Home e, claro, de The Logical Song. Do segundo, a explosão de It´s Rainning Again e do marcante vídeo de My Kind Of Lady, no Fantástico, da TV Globo. Muito pouco para puxar da memória alguma impressão sobre as duas obras. Hoje, porém, olhando em retrospectiva, com leituras a respeito, posso entender algumas coisas que cercaram a realização de ...famous...

Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que Breakfast foi o pico da carreira do Supertramp. Um pop poderoso, altamente elaborado, tanto musicalmente, quanto graficamente, conforme citado acima. Altas colocações nas paradas de singles (compactos) e vendas astronômicas (3º lugar, na Inglaterra, e 1º, nos EUA e Canadá). Uma turnê de dez meses (01 de março a 09 de dezembro de 1979), 121 shows (!!!), 52 toneladas de equipamento (a banda tinha comprado seus próprios sets de luz e som), 40 pessoas na equipe... enfim, tudo se tornou gigantesco. Mais do que eles sequer pensariam. Tanto, que a turnê mereceu três programas: um para a Europa, um para os EUA e outro para o Canadá. O país da Maple Tree, em sua história e bandeira, tinha a maior base de fãs do Supertramp, inclusive.

Gigantesco ao ponto de, segundo Martin Melhuish, autor de “The Supertramp Book” (Ominibus Press, 1986), Roger e Rick finalmente concordarem sobre uma coisa: caso a banda continuasse a fazer tantos shows, a carreira entraria em declínio, pois não teriam como se desenvolver em estúdio. O complemento a esse pensamento é mais do que interessante: Rick diz que a banda tinha quase 60 músicas não gravadas, o que lhes garantia, ao menos, alguns discos adiante. Se algumas dessas músicas, bem como quais e quando, foram utilizadas, não sei. Mas sempre me perguntei a razão do Supertramp não lançar raridades e sobras de estúdio. Isso só atiçou, mais ainda, minha curiosidade.

O fato é que, após o sucesso estrondoso de Breakfast, veio o estrondoso sucesso de Paris, o disco ao vivo, gravado durante sua turnê, no Pavillon, na capital francesa. De novo, um disco deles era campeão de vendas nos EUA, Canadá e Europa, além do resto do mundo todo. Claro que, depois disso tudo, a pergunta que não iria querer calar era: e agora, José? Como superar o insuperável?

 
Anúncio de show da banda


É aí que entra um fator que achei por demais curioso: no planejamento da concepção e Breakfast, Rick e Roger tinham acordado que, além de terem vivido o suficiente em Los Angeles, para falar sobre a cidade e um pouco sobre o modo de vida americano, o trabalho poderia trazer letras que refletissem a relação entre... eles! Ou seja, a coisa já tinha chegado a tal ponto, que eles próprios já tinham jogado os pratos para o alto e reconhecido que a convivência difícil entre os dois já não era segredo para ninguém. Tal fato, além de relatado em livros, é citado por Hodgson e Bob Siebenberg, em entrevistas publicadas em seus sites. Além disso, Roger tinha captado para si um pouco mais da liderança do grupo. O que se reflete, logicamente, na forte característica pop do disco. Pouco do blues e do progressivo, tão ao gosto de Rick, entrou no álbum.

Depois disso tudo, Rick Davies esperava que o disco a ser lançado em 1982 tivesse um pouco mais de progressivo. Já tinha até preparado uma música que, talvez, pudesse puxar o disco. Com cerca de 16 minutos de duração, e letra que refletia a Guerra Fria e outros problemas mundiais daquele momento, Brother Where You Bound seria a linha mestra do trabalho.

Seria.

Do verbo “não foi”.

Acabou ficando para o disco a seguir, homônimo. E sua gravação contou até com David Gilmour (Pink Floyd). Com a rejeição a sua nova canção, Rick meio que trabalhou já com o freio de mão puxado, por assim dizer. Então, de um lado, tivemos um dos líderes, Roger, querendo sair da banda, mas mandando em quase tudo. Do outro lado do ringue, Rick, sem ânimo para nada.

Anúncio do disco Crime Of The Century, num outdoor

 
E, sim, sente-se esse desânimo em algumas das faixas de ...famous last words... Até o título reflete um pouco o estado de indagação da fase do grupo, conforme atesta John Helliwell. Todo esse ambiente chegou à parte gráfica do disco, a cargo de Mike Doud. Na capa, um equilibrista em meio ao vazio, olha para trás assustado, ante a ameaça de uma mão portanto uma tesoura, em franca posição de corte de sua frágil base de caminhada. Impossível não evocar a capa de Crime Of The Century, em que, em meio ao espaço, um par de mãos agarram uma grade. A sensação de busca de significado, em meio ao nada, é bem similar.

As cores em degradê, do preto ao vermelho, passando pelo roxo, violeta, amarelo e laranja, também foram a escolha perfeita. Reforça a sensação de movimento. De ausência de luz, na parte superior, à base acalorada, com a multidão na expectativa do que pode acontecer. No encarte, um lado traz os membros da banda como equilibristas. Cada um em uma direção, na maioria das vezes, como que procurando seu próprio caminho. Todos com vestimentas diferentes. Rick é o único a olhar para a câmera, em uma das fotos. No outro lado, as letras. Desta vez, ainda que assinadas pela dupla, para marcar quem escreveu o quê, Roger teve suas cinco composições em letras brancas. Rick, teve suas quatro impressas em amarelo.

 
Letras em cores diferentes. Branco para Roger. Amarelo para De Rick


AS FAIXAS

Chegando aos “finalmentes”, vamos às músicas.

Apesar de ser um disco supostamente triste, ele começa com a bela e elaborada Crazy, de Roger Hodgson. E o recado já é direto. Começa dizendo “aqui está uma pequena canção, para te fazer sentir melhor”, passa por versos do tipo “tudo bem, ganhar ou perder”, mas chega ao ponto da dificuldade daquele ponto, em que todos sabem do que ocorre, mas nada é feito. E chega à pergunta: “Oh, brother, why´s it gotta be so crazy?”, no refrão. Ao vivo, ela ganha ainda mais força. Fizeram muito bem em escolher Crazy para começarem os shows da turnê.

Em Put On Your Old Brown Shoes, Rick não deixa por menos e manda, de cara: “Put on your old brown shoes, right on your feet. Time to move on, get away”. Não tem segunda estrofe. Já mandou um refrão: “You and me, we´re helpless, can´t you see... got to move on, till the madness around is gone”. Ao longo da letra, nada de tirar o pé: “you know a friend is a friend, you don´t leave him in trouble, he got a little drunk, so now he´s seeing double... but you have to lend a hand, ´cause you know he´s on the level” e segue: “get your blue jeans right on, babe”. Só faltou um “Tchau. Valeu. Abraço”. Apesar dos recados, Rick faz aqui uma coisa da qual eu realmente gosto e na qual é mestre: versos com longas frases, que entrecortam o ritmo e o andamento. Nesse quesito, ele é realmente brilhante. Vale notar que esta música e C’est Le Bon contaram com as irmãs Ann e Nancy Wilson (Heart) nos vocais de apoio.

Ainda que Roger afirme que It´s Rainning Again foi composta em sua adolescência, num dia de chuva e tal, acho sintomático, no mínimo, que ele a tenha gravado para esse disco. Sim, Bob Siebenberg atesta que já a tinha ouvido antes. Mas, por que, então, ela não entrou em Breakfast? Por que entrou logo no último disco dele com a banda? “Coisas da música” é a melhor resposta. Sobre a letra, bem... é aquela coisa: gostei muito dela, quando lançada (tinha 11 anos, lembre-se), fica muito bem ao vivo, levanta a galera e tal..., mas... não me empolga tanto, hoje em dia.

O outro lado do encarte: banda se equilibra em várias direções

Abusadamente, apesar da boa mensagem em algumas frases (“You're old enough some people say To read the signs and walk away It's only time that heals the pain And makes the sun come out again”) ou (“C'mon you little fighter No need to get uptighter C'mon you little fighter And get back up again Oh, get back up again Oh, fill your heart again”), digo que falta algo mais profundo. E que me perdoem pela franqueza. Só escrevo isso porque sabemos da capacidade de Roger, como compositor e letrista. Embora saiba que foi composta na adolescência e que a época da gravação não era das melhores, para a banda e ele. E que, apesar de tudo, ser simples é bem Roger.

E vem Bonnie. A belíssima Bonnie. Um piano com notas lentamente sincopadas, que permanecem por boa parte da música, precede a entrada forte dos versos “Your silver nights and golden days, I try to reach you in a million ways...”. Embora claramente uma declaração de amor, não consigo deixar de também ver um recado para Roger. Ainda que inconsciente. Há partes da letra que não são um primor, realmente. Mas é uma bela composição. E acho o arranjo sensacional, com mudanças de andamento e um forte retorno à melodia e harmonia principais. Que, se parecem comuns para muitos, para mim, é uma bela combinação, em Bonnie. E, nesse entremeio, a guitarra de Roger. Uma das mais bem tocadas por ele, numa composição de Rick. Assim como o solo deste, na escaleta, em It´s Rainning Again, a guitarra de Roger emprestou um toque de classe que era exatamente o necessário à música.

Know Who You Are traz Roger sendo Roger. Música calma, com um de seus dedilhados no violão, realmente diferenciados. Não só nos acordes que usa, mas na forma como usa a mão direita. Deixa as notas soarem longas. Há um fade out e a música retorna, brevemente. Mas o suficiente para vermos que era necessário. Aquele tipo de arranjo que pode não parecer muito, mas que acrescenta um algo inexplicável à canção. Nas letras, o incentivo para que o ouvinte se conheça melhor, se sinta, se deixe levar pelo coração e mostre tudo isso a todos. Recado a Rick? Pode ser. Mas creio ser mais uma manifestação sincera das crenças de Roger, até para si mesmo.

Às vezes, pedimos, para o outro, algo que queremos para nós.

My Kind Of Lady. Como resistir à declaração de amor, com marcação tão anos 50, ao fraseado rápido de Rick, ao falsete do refrão e, por fim, ao saxofone rasgado de John Helliwell? Como cereja de bolo, tudo isso veio embalado num vídeo simplesmente maravilhoso. Sempre em preto e branco, num dos cenários, com discos espalhados, Rick à frente, num microfone, com os outros como backing vocals, fazendo gestos, marcando a música. Em outro cenário, ele ao piano e os outros com seus instrumentos, também perfazendo danças e gestos. Tudo tão bem ensaiado quanto levemente engraçado.

Agora, os detalhes: apesar de encenado por John Helliwell, Dougie Thompson e Bob Siebenberg, o tal falsete, que acompanha algumas frases, foi cantado unicamente por Rick Davies. Sim. Apesar de ser conhecido como “a voz grave do Supertramp”, ele é um vocalista tão poderoso quanto versátil. Pode não ter um grande alcance (mas faz um final estupendo de From Now On, ao vivo), porém, faz um belo falsete. Não sei se deu para notar, mas, nos backing vocals, faltou Roger Hodgson. Que, se não está ali, aparece em fotos, trajado em terno, igual aos demais. Só não participa dessa parte do vídeo. Por quê? Não sei. Mas encena normalmente a outra parte, com a banda, já com outros trajes, sem o terno. E, conforme mostram as imagens, todos sem barba e com muito gel no cabelo, com topete e tudo. É um dos vídeos que vi, ainda criança, e que mais guardo na mente. Pela música e pelas cenas.

Roger se vestiu de vocalista, mas não atuou como tal, no vídeo de My Kind Of Lady


C’est Le Bon traz os característicos questionamentos de Roger Hodgson sobre a vida, o que é ser alguém e o que o mundo tenta fazer conosco. Meio que uma continuação de The Logical Song, só que bem mais calma e com um apelo para que os amantes voltem para o jardim, que precisa de cuidados. Um bom arranjo, com um violão mais batido, ao invés de apenas dedilhado. A beleza da letra é clara. Mas eu enxergo um cansaço. É boa. Não é ruim. Compositores do nível de Rick e Roger têm de se esforçar muito, para fazerem algo ruim. Mas a música reflete bem o clima que rondava os estúdios, naquela época: havia boas coisas a serem ditas e cantadas. No entanto, parece que o desgaste impedia o perfeito funcionamento de das peças de toda aquela engrenagem. No final, algo como um resignado recado: “Tudo bem, navegando e navegando, sem parar...”

Em Waiting So Long, com uma bela parte de sopro de John, na introdução, Rick volta à carga: “Did you get all you want? Did you see the whole show? So where´s the fun? That we used to know”? Mais à frente, em meio a mais perguntas e constatações (“nothing new, it´s just the same old thing, you got me singing those old blues again”), a sentença: “the blindness goes on”, verso cantado repetidamente. Após uma breve execução da instrumentação da introdução, Roger entra com um solo tão inesperadamente pesado, quanto pungente, que costumo aumentar o volume, para ouvir melhor. Apesar de curto, tem as costumeiras variações que Roger costuma fazer, os “diálogos”, como costumo dizer, sem escalas pré-fabricadas, recurso tão utilizado por muitos. E tem um fim. Não termina em fade out, o que acrescenta drama à letra de Rick. Ao vivo, a música ganha ainda mais força, com Roger prolongando o solo. E chega a expressar fisicamente, tudo o que sente no momento, levantando a guitarra e se balançando de um lado a outro.

E chegamos a Don´t Leave Me Now. Mais uma vez, uma letra que pode falar de abandono, amoroso, talvez, mas que, olhando a situação, bem parece um apelo de Roger a Rick. Na letra, o pedido do título é repetidamente cantado, acompanhado de situações de fragilidade, em que o autor se colocava, hipotética e comparativamente, no momento. Não tem refrão. É dura. Difícil. Pode parecer possuir clichês, nessas condições propostas. Mas, ainda assim, mostra um indubitável grito de socorro.

Roger sabia que a jornada a seguir seria difícil. Tanto para ele, quanto para a banda. Para o grupo, cabia a missão de se reinventar, ainda que com a maior parte dos integrantes – e de seu líder-fundador – presente. Mas sairia de cena a leveza que Roger trazia. A este, por seu lado, caberia mostrar ao público do Supertramp que poderia sobreviver fora do Supertramp, ainda que não contasse com o som básico que Rick representava. Vale dizer que ambas as partes tiveram algum sucesso, mas sobreviveram sempre com maior base no repertório de seu legado com o Supertramp.

Voltando à faixa, que contou com a cantora e atriz canadense Claire Diament, nos belos vocais de apoio, seria Don´t Leave Me Now um último grito de conciliação, em meio ao caos? Não sei. Só penso ser bem sintomático que ela, a última canção do último disco da formação clássica do Supertramp, termine meio que da mesma forma como finaliza Crime Of The Century, o primeiro álbum desses integrantes juntos, com a composição homônima ao título do trabalho: a música em fade out, sempre pontuada pela bateria, até sumir de vez. Em meio ao vazio que o Supertramp clássico desfeito deixou na música. Feito as capas desses dois discos.

Quarta capa do programa da turnê, com os discos até 1983

 













1983: Supertramp e sua ...famous last tour...

  por Luciano Teles



 
Capa do programa da turnê 83


A turnê de 1983 foi a última do Supertramp, com sua formação clássica. Rick Davies (teclados, voz e harmônica), Roger Hodgson (teclados, guitarra e voz), John Helliwell (saxofone, outros metais e vocais), Dougie Thomson (baixo e voz) e Bob Siebenberg (bateria) se apresentaram 64 vezes, em 46 cidades. A partir daí, Roger Hodgson e o restante do grupo seguiriam caminhos separados. E não voltariam a se reunir.

No entanto, falar sobre essa turnê não é simples. Não é apenas pegar o programa, ler sites com as informações a respeito e ver o que estava planejado para acontecer e como tudo correu, entre 1º de junho e 24 de setembro de 1983. Como definir um período de quatro meses, em que um integrante (Roger) anunciava, em cada show, que deixaria o grupo, ao final da tour? Ele até falava que “havia muita música boa a vir, de todos nós” e tal. Mas a ruptura estava exposta. Assim, é de se pensar: Como estava o ambiente no grupo e entre as pessoas que o acompanhavam? Como estava a relação entre o próprio Hodgson e o outro principal compositor e cantor do Supertramp, Davies?

Datas iniciais da turnê. Datas extras foram agendadas


 A frase que me veio foi a óbvia “dormindo com o inimigo”. Porque “Sleeping With The Enemy “ chegou a ser o título do primeiro disco solo de Roger Hodgson. Foi mudado para In The Eye Of The Storm. Que podia não ser tão pesado, mas mostrava o quanto a saída dele foi traumática e com sentimentos totalmente misturados. O ainda chamado Sleeping With The Enemy foi gravado entre o lançamento de ...famous last words... (grafia correta do nome) e a turnê de 1983. Ou seja, entre outubro de 1982 e maio de 1983.

Sim: a turnê de 1983 foi a última com Roger Hodgson. Mas os desencontros entre ele e Rick Davies já vinham ganhando corpo desde meados da década anterior. Na verdade, ainda durante a composição e gravação do álbum mais famoso e elogiado da banda: Crime Of The Century (1974). O sucesso deste gerou uma série de compromissos e shows tal, que simplesmente dificultou que o próximo, Crisis? What Crisis? (1975), fosse composto e gravado num processo normal. Acabou reunindo material não lançado em Crime Of The Century. A parceria na composição, no entanto, já tinha acabado. Segundo o próprio Hodgson, assim como Lennon/McCartney, depois de um tempo, cada um escrevia e cantava suas composições. Apenas assinavam juntos.

Aliás, essa comparação é muito comum. Eu concordo e a levo adiante: tal qual John, Roger escrevia quase que apenas sobre si mesmo, seus sentimentos do momento, dramas humanos e o que ele pensava a respeito do mundo e de seu tempo. Ainda: com muito de George Harrison, pois Roger também passou a dar importância às questões espirituais. E, claro, a paz na Terra e aos homens de boa vontade. Assim, temos Dreamer, The Logical Song, Babaji, Hide In Your Shell, Give A Little Bit e tantas outras. Já Rick gostava de escrever sobre qualquer coisa. Bem parecido com Paul McCartney. Fosse sobre alguém, algo do cotidiano ou alguma situação, ele sabia colocar em palavras todo o cenário que queria passar. Dessa facilidade, vieram Rudy, Gone Hollywood, Lover Boy e From Now On, por exemplo.

 
Textos do programa da turnê 83


Os estilos musicais dos dois também eram bem distintos, da mesma forma que Lennon e McCartney. É lógico que não podemos dividir tudo matematicamente, nem cravar que isso ou aquilo seja 100% de um jeito. Mas podemos elaborar um pensamento a respeito. Mesmo bem chegado num progressivo, Rick Davies é como John: gosta de blues e um rock and roll básico. Além de jazz e R&B. E sabe mandar umas baladas cujo lirismo é de uma beleza tão tangível quanto pungente. Isso o fez nos brindar com Ain't Nobody but Me, Another Man's Woman, Goodbye Stranger, Blood Well Right, Crime Of The Century, Bonnie e Downstream.

Já Roger Hodgson se joga no pop de roupa, mochila e tênis. Também gosta de baladas e usa e abusa de seus dotes de (excelente) violonista e guitarrista, tecladista e baixista – seu primeiro instrumento, no início da banda. Claro: o Supertramp não seria considerado um grupo de progressivo pop, se ele também não se embrenhasse pelo estilo mais elaborado. Com isso, nos presenteou com Even in the Quietest Moments, School, A Soapbox Opera, Two Of Us e a épica Fool´s Overture.

Parte disso pode ser confirmado em uma das matérias disponíveis no site de Bob Siebenberg – aliás, recomendo leitura dos sites dele, de Roger e de John. Em uma entrevista transposta do fansite The Logical Web, dedicado à banda, de dezembro de 2019, ele respondeu a várias perguntas dos fãs. Sempre muito metódico sobre o que fala – o que pode ser verificado em outros textos. Bob define bem os dois principais compositores do Supertramp, quando perguntado sobre qual deles era uma força para a banda:

“Roger era brilhante no acústico. Know Who You Are e Even In The Quietest Moments... Acho que isso era o que nos separava do restante das bandas, nos 70s. Ele também tem o dom de ser um excelelente compositor comercial. Nenhuma conotação negativa nisto. É um dom. E ele tem essa capacidade. Suas letras podem ser bem profundas e instigantes. Rick era mais terreno e fácil de se identificar com suas letras. Ele escrevia sobre o cotidiano. E também podia ir bem fundo. Ao piano e órgão, soberbo, fabuloso. Bem poderoso e direto. Eu sei que eles escreviam separadamente. Eu estava lá. Mas o que um ofereceu para as músicas do outro foi significativo e especial” – conclui, tão certeiro, quanto diplomático. Postura da qual não discordo em nada.

Textos do programa da turnê 83


Resumindo, dois talentos diferentes e diferenciados, que, juntos, eram uma máquina de composições certeiras. Porque, ainda que escrevessem em separado, até com certa disputa, um acabava sugerindo arranjos nas músicas do outro. E a vida seguia. Em ...famous last words..., a coisa já não foi bem assim. Mas, para falar do último trabalho com Roger, temos de voltar algumas casas. Ou alguns discos. Porém, isso é assunto para o próximo post, específico sobre o disco.

A organização da turnê não se deu de forma tão natural, como normalmente seria, num processo de divulgação de trabalho novo. Havia a intenção de se comemorar dez anos daquela que foi a formação definitiva do Supertramp. E, com a iminente saída de Roger, passaram a tratar aquela como uma turnê de despedida dele. Adicione-se a esta novidade, o fato da última aparição da banda, perante a mídia e público, ter sido já há praticamente três anos. Ou quatro, se considerarmos que, em shows, foi na turnê de 1979. Em disco, no lançamento do ao vivo Paris, em 1980.

Aqui, vale destacar uma apreensão da banda: será que o público ainda se lembrava deles? A pergunta pode parecer absurda, atualmente. Porém, em tempos sem internet, sem interação instantânea com o artista ou seu staff, em tempo real, sem redes sociais ou nada do que se conhece hoje, a divulgação de um trabalho passaria pelo seguinte roteiro: gravação, entrevistas, lançamento de disco, entrevistas, aparição em programas de TV e rádio, shows, matérias em jornais e revistas, mais shows, mais entrevistas etc. Até um pouco depois que a turnê acabasse. Se dela fosse originado um disco ao vivo, um novo processo do tipo se desenrolaria. Mas não muito longo. Ou seja: dentro desse quadro, com notícias esparsas – em revistas sobre instrumentos musicais, por exemplo -, num intervalo de três ou quatro anos de “silêncio”, a dúvida era mais do que justificada.

 
No palco, a garçonete Libby e a banda recebendo discos de ouro e platina


Outras observações são válidas: geralmente, quando um grande artista ou grupo anunciava uma turnê, o mundo dos fãs parava. Começava-se um processo de busca por informações e, principalmente, ingressos. Comprava-se todos os jornais e todas as revistas. Os programas de rádio e TV ganhavam maiores índices de audiência. Uma parte de tudo isso ainda se repete ou se viu a até bem pouco tempo atrás: vai passar em quais cidades? Vou precisar me deslocar? Como comprar ingressos, se o show não vai acontecer aqui? Onde ficar? Ou seja: morando, ou não, numa cidade que sediasse um desses shows, a compra de ingressos originava filas quilométricas, com pessoas morando nas ruas, praticamente. A frustração vinha quando grandes shows tinham seus ingressos vendidos em questão de horas. Numa época em que a transmissão ao vivo e exibição de especiais dos shows eram raras, nada mais desanimador.

Mas há um outro lado desse cenário, que as pessoas podem não ter se tocado de ter desaparecido: a cobertura pela imprensa local. Fosse para um show próprio ou dentro de um festival, os artistas chegavam, davam uma entrevista coletiva, uma ou outra exclusiva e um material local seria produzido. Fosse na capa de algum caderno cultural de jornal ou de alguma revista do ramo, num programa de rádio ou TV, o fã teria a sua disposição matérias feitas por jornalistas locais, em seu próprio país ou até em sua cidade. Hoje em dia, praticamente tudo é pescado das redes sociais. E nem sempre é o próprio artista que posta. Muitas vezes, é algum assessor. Não que isso gere informações falsas ou algo do tipo. Mas perdeu-se uma ponte que, ao meu ver, era bem interessante. Enfim, perdas e ganhos das eras tecnológicas que se seguem.

Voltando à turnê, comecemos pelo programa. Seguindo a linha de lembrar dos dez anos da formação clássica, lembrar de histórias da banda, ao longo desse tempo, foi uma excelente ideia. Deu uma leveza necessária ao projeto.

 
A icônica foto da capa interna do LP Paris e Rick em raro momento de extroversão


Os relatos começam no verão de 1973. Depois de quatro anos e dois álbuns lançados, com diferentes formações, Rick e Roger tinham angariado reconhecimento de parte da crítica, mas nada de sucesso comercial. Daí, veio um dilema natural, já que “money, que é good, nós num have”: parar ou tentar mais uma vez?

Escolheram continuar. Depois de intermináveis audições, encontraram em Bob Siebenberg, Dougie Thomson e John Helliwell a formação ideal. O resto é história: no final daquele ano, se recolheram numa casa, em Shouthcombe, Somerset, na Inglaterra, e começaram os trabalhos. Rick e Roger escreviam e a banda ensaiava. O trabalho originou o clássico disco Crime Of The Century, sob a produção de Ken Scott. E o som do Supertramp ganhou corpo de vez.

Na continuidade do texto inicial, a descrição daqueles primeiros tempos na estrada: Uma noite, o carro no qual John, Rick e Bob iam ao show simplesmente se incendiou. Eles conseguiram chegar ao local. O carro não. Indo para outra apresentação, em Oslo, Noruega, o ônibus que levava a banda e “toda sua equipe” (4 pessoas) e equipamento, encalhou na neve. E fazem a clássica piada: “Dizem que ainda está lá”. Em alguns shows, o público era escasso. É quando entra a famosa história contada na foto interna da capa do disco Paris: Numa comparação, em 1979, lotaram quatro noites, com 40 mil pessoas. Mas, naquele início, apenas oito pessoas foram ver um show deles. Das quais, seis tiveram o ingresso comprado e cedido pelo empresário da banda...

 
Sim, a banda se divertia. E muito!


Mas tudo deu certo: Crime Of The Century alcançou o primeiro lugar nas paradas britânicas. A turnê pela Europa também foi um sucesso. Então, resolveram se aventurar pelos Estados Unidos e Canadá. Cidade após cidade, foram angariando público, sendo reconhecidos e, no início de 1975, o Supertramp recebia seu disco de ouro pelo álbum. O primeiro de muitos.

Continuam as recordações e citam fatos das gravações de Crisis? What Crisis?, em 1975. Começaram em Los Angeles – com a banda esperando pela recuperação de Roger, que havia fraturado o braço. Foram finalizadas em Londres. Nova tour mundial nos planos, o Supertramp resolveu incrementar seu equipamento de luz e som de palco, também incorporando exibição de filmes. A equipe de apoio, que já não era exatamente de apenas quatro integrantes, foi carinhosamente apelidada de Supertramp Army. E todos saíram para a ambiciosa turnê de oito meses. A banda brinca com o fato de serem interessantes o suficiente para o tablóide londrinho The Sun colocá-los em páginas de destaque.

A turnê de Crisis? rodou dois meses pela Inglaterra e Europa. Nesse meio tempo, Rick tirou sua tradicional barba. No show a seguir, John Helliwell (sempre o mestre de cerimônias) o apresentou como “O Turco”. Para as matérias trazerem, no dia seguinte: “O pianista turco é muito bom!”. Novamente, após a Europa, foram aos EUA e Canadá. Depois, tiveram disposição para irem ao Japão, Austrália e Nova Zelândia.

 
A partir da esquerda: testando repertório novo, junto à mesa de controles e em frente ao estúdio


Em 1976, os integrantes se mudaram de vez para a Califórnia. Mas escolheram gravar o próximo disco no estúdio Caribou Ranch, nas montanhas nevadas do Colorado. Depois de três meses, voltaram a Los Angeles e mixaram o álbum, com os engenheiros de som Geoff Emerick (Beatles) e Pete Henderson, no Record Plant. Mas a equipe de apoio voltou ao Caribou. Eles tinham de arrastar um piano de cauda até um lugar, no topo da montanha, após uma tempestade de neve, para fotografarem a capa do já intitulado Even In The Quietest Moments.

 
Caribou Ranch: piano fora e a capa pronta


Mais uma vez, uma massiva turnê os aguardava. Seriam 130 cidades nos EUA, Canadá, Europa e Inglaterra. Em seu país natal, a banda estreou, no Wembley Arena, o palco já decorado com o que viria a ser a marca registrada da banda: o guarda-sol amarelo. Turnês eram mais do que trabalho duro, agora: eram um meio de vida. Com seus momentos engraçados, é bem verdade. Principalmente no palco, com John incrementando seus adereços, óculos a la Elton John, vestimentas e repertório de piadas.

O programa termina este trecho ressaltando que parecia que o Supertramp tinha alcançado algo com o que nunca havia sonhado, nos dias iniciais.

Mas ninguém imaginaria o que ainda estava por vir.

O que estava por vir era o absoluto sucesso de Breakfast In America. Um disco sobre o qual pouco precisa ser falado, reconhece o texto do programa. Tomou o mundo de assalto, com canções com base nas impressões de uma banda inglesa (apesar de seu baterista californiano) que se muda para Los Angeles. O disco subiu ao número 1 rapidamente. Disco de ouro foi seguido pelo de platina e as vendas terminaram superando os 16 milhões de unidades, no mundo todo. Por curiosidade, chequei a população da Inglaterra, em 1979. Era de cerca de 46 milhões de habitantes. Ou seja: proporcionalmente, se as vendas fossem concentradas no país bretão, era como se um a cada três indivíduos tivesse comprado o disco. Não é pouco.


O programa traz as fotos para a capa de Crisis? O guarda-sol amarelo foi aberto na história da banda


O programa descreve a capa e a arte de Breakfast In America. Destaca a icônica garçonete “Libby”, posando como a Estátua da Liberdade - na verdade, a atriz Kate Murtagh (29 de outubro de 1920 – 10 de setembro de 2017). Entre as descrições dos trabalhos dos vários fotógrafos envolvidos, é mencionada uma aposta de 100 dólares, entre Rick e Bob, com o primeiro certo de que o Breakfast In America não atingiria os cinco primeiros lugares nas paradas norte-americanas. Que foram animadamente pagos, depois de um show no Madison Square Garden, Nova Iorque, onde receberam seu primeiro disco de platina.

A turnê de Breakfast reuniu 52 toneladas de equipamento (totalizando US$ 5 Milhões), 16 quilômetros de cabos e uma equipe de 40 integrantes. Quebrou todos os recordes de público em shows, na Europa e Canadá, e tomou as manchetes dos jornais, sempre recebendo elogios superlativos, consolidando a fama da banda em promover shows espetaculares. Depois de dez meses de turnê, um breve descanso e já tinham um novo trabalho, já em 1980: preparar, lançar e divulgar Paris, o disco ao vivo, gravado no Pavillon da capital francesa, durante uma temporada de quatro noites no local.

 
Canadá, então a maior base de fãs do Supertramp


Finalmente, no final de 1981, começaram os preparativos para ...famous last words... O programa, claro, é bem diplomático em seu texto. Apenas cita que foi basicamente ensaiado nos estúdios de Rick e gravado, em sua maior parte, nos estúdios de Roger. As irmãs Wilson, Ann e Nancy, da banda Heart, gravaram backing vocals em duas canções. A banda testou alguns números novos numa apresentação, num clube do norte da California. E gravou vídeos para My Kind Of Lady e It´s Raining Again. Já, na época, um recurso importante e mais utilizado, para divulgação musical. O primeiro foi bem mais elaborado, com a banda toda paramentada como músicos dos anos 50 – devido ao estilo da música. O segundo, com cenas ao ar livre, em ônibus e mais leve, não demandou tanta elaboração, apesar de também ter ficado muito bom.

Foto do disco Breakfast In America



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