Um dos pôsteres da turnê de 1983 |
| Por Luciano Teles |
Posso dizer que o disco Paris mudou minha cabeça. Desde antes de eu ouvir o álbum todo. Antes de tê-lo gravado em fita cassete, escutávamos o que dele era tocado no rádio. Era 1981/82. Eu tinha por volta de 10/11 anos. Ainda me recordo do impacto de Dreamer, The Logical Song e, principalmente, Fool´s Overture. Das três, só sabia o nome da primeira. Paris me mostrou a diferença entre uma gravação ao vivo e a de estúdio.
Quando gravei o disco em fita, passei a escutar direto. Em casa ou no carro, aquela fita virou parte inseparável de mim. Eu não sei a razão, mas, mesmo sem saber se o Supertramp era pop, progressivo ou o que fosse, para mim, era uma música completamente diferente. O principal: um som muito, muito bom de se ouvir. Elaborado e difícil de tocar ao violão, instrumento que eu aprendia, na época. Mas de fácil assimilação, mesmo as mais elaboradas. A separação das músicas entre as vozes de Rick Davies e Roger Hodgson aumentava a curiosidade em torno da banda, claro. E, sim: faltava ver a banda tocando. Faltavam imagens.
Até que, em 1987, meu irmão chega de Manaus, onde morava, com uma fita VHS. Com gravação de partes de um show da banda, em Toronto, na noite de 24 de agosto de 1983, exibido em um especial da TV Manchete. Exatamente da turnê sobre a qual escrevo. Como erroneamente anunciado no programa, esse show pode ser encontrado na internet como tendo sido em Montreal e Los Angeles. Não sei explicar, mas de cara eu percebi algo diferente entre o que eu via, naquele momento, e o que eu ouvia em Paris. Um som mais aberto, mais encorpado, talvez? Pode ser. Influência de ter imagens, finalmente? Era uma possibilidade. Mas, como, se a banda era a mesma?
Letreiro dos vídeos, com os músicos convidados |
A banda era a mesma. Mas com dois músicos multi-instrumentistas e convidados: Scott Page (saxofone, flauta, percussão, guitarra e vocais) e Fred Mandel (guitarra, teclados, sintetizadores e vocais). Ambos com histórico de bons serviços prestados a outros artistas. Mandel trabalhou com Alice Cooper, Pink Floyd, Queen, Elton John e até o Anthrax (hã?!?). Page tem trabalhos registrados, também com o Pink Floyd, e Toto. Além de trabalhar com produção e tecnologia de áudio e vídeo, assessorando um grande número de nomes do pop-rock.
Ter dois músicos tão versáteis deu uma liberdade de ação muito grande ao Supertramp. E a possibilidade de fazerem, ao vivo, partes instrumentais que foram gravadas para os discos, mas que não poderiam ser executadas no palco. Exemplo: em Crazy, Roger toca piano. Mas, para alguns momentos da música, ele gravou fraseados de guitarra. O mesmo em The Logical Song (refrão). E agora? Com músicos convidados, a tarefa ficou bem mais fácil e viável.
Acredito, inclusive, que o mais aliviado com o auxílio foi Hodgson. Ele, que entrou para Supertramp tocando baixo, já era guitarrista e tecladista, além de cantor, claro. Agora, tinha colegas com quem poderia dividir a responsabilidade por alguns dos instrumentos ao vivo. Além de tudo, Page, tendo o sopro como ofício principal, pode trabalhar bastante com Helliwell. Enfim, ele e Mandel puderam fazer partes específicas de algumas músicas, aproximando as versões ao vivo do que foi colocado no disco, nas gravações de estúdio. Hoje, vendo tudo isso nos shows disponíveis da turnê de 1983, Munique (23/11/1983) e Toronto (24/08/1983), percebo que essa era a resposta para a minha indagação de 1986.
Scott e Fred em fotos do programa da turnê de 1983 |
Um dos maiores exemplos dessa liberdade vem logo na música de abertura dos shows. Crazy tem Hodgson no vocal principal e ao piano. Com Scott na banda, John e Rick não tiveram de tocá-las num teclado. A guitarra não é tocada durante toda a música, apenas no refrão, e em pequenas intervenções. Mas, sem ela, a canção perde muito. E a guitarra de Page está com o peso certo para os fraseados. Nas partes em que não toca guitarra, toca percussão. Mandel permanece nos teclados. Ambos colaboram nos vocais. Observação minha, depois de muito escutar Crazy: é uma música tão boa, tão peculiar, que, da mesma forma como abriu os shows de 1983, poderia muito bem fechar as apresentações. Caso não tivéssemos Crime Of The Century, logicamente. Principalmente pelo arranjo de sua finalização – no disco, ela termina em fade out.
A seguir, Ain´t Nobody But Me. Música que me pegou pelos ouvidos, ainda no disco Paris. E é impossível não escutar o “Bonsoir Paris! Et bienvenue a une soiree avec Supertramp! Nous sommes très heureux de jouer a Paris” (Boa noite, Paris! E bem-vindos a uma tarde com o Supertramp. Estamos muito felizes por tocarmos em Paris), dito logo após sua execução, no disco ao vivo gravado na capital francesa. É o “preço que se paga”, por ouvir muito um álbum, até que ele faça parte de sua massa cinzenta. Aqui, uma observação: como é a primeira música, nos dois shows, em que Roger começa a tocar guitarra, percebi como que ela está num volume bem alto, e ele com uma vontade e entrega, como poucas vezes vi em apresentações anteriores - BBC ou Paris, por exemplo. Incluindo certos gestos e posturas. Quase um guitar hero. Mandel permanece nos teclados, enquanto Page fica na guitarra, mas já com um saxofone pendurado, pois também toca este instrumento.
Roger e Scott tocam guitarra em Ain´t Nobody But Me |
A seguir, John Helliwell assume seu tradicional papel de cicerone, mestre de cerimônias da banda, pois sempre foi o que mais conversou com o público. Aliás, além de sua alta musicalidade e competência, muito de sua entrada na banda se deveu, também, ao seu desprendimento e bom humor. John relata que foi levado por Dougie Thomson a um ensaio. Os dois já se conheciam e a integração musical com o grupo foi imediata. Por volta de 1980, em uma entrevista, ele disse que, após tocarem, ficou um “silêncio de eternos 20 segundos”. Até que ele soltou uma piada velha. Todos riram e o convidaram a voltar no dia seguinte. “Só que, até hoje, não recebi convite para entrar na banda. Então, vou gravando discos, excursionando... e é isso hahaha”.
Em Munique, ele fala que o Supertramp como um todo, expressão bastante usada por ele, ama Munique e a Bavária, em geral. Que, na noite anterior, ele havia tomado muitas cervejas da região e tal. E que, naquela manhã, acordou sentindo falta de seu Breakfast In America. Já em Toronto, Canadá, país com o maior número de fãs da banda, disse que tinham estado fora por muito tempo. E que, sempre que estava distante, ele realmente sentia falta de... adivinhe: Sim, “meu Breakfast In America”. As plateias adoram esse tipo de coisa. Antes de acharmos repetitivo – pois temos dois shows filmados a nossa disposição -, devemos nos lembrar de que, em uma turnê, o show é como uma peça de teatro: um roteiro básico, posições marcadas no palco e, se um caco ou improviso cai bem, tende a ficar pelo resto da excursão. Será que, no Brasil, nos shows do grupo, no Hollywood Rock, no Rio e em São Paulo, ele falou em feijoada, caipirinha etc? Agora, fiquei curioso rsrs
Nota do tipo que não vale nada, mas acrescenta cultura inútil: no anúncio da segunda edição do festival Hollywood Rock, em 1988 (a primeira havia sido em 1975), eram mostradas imagens das bandas. Pelo que me lembre, as do Supertramp foram retiradas deste show de Toronto. Ainda na sólida base do “se não me engano” (sim, risos rsrs), além das imagens de Rick e Roger em close, foram mostradas suas faces enquanto cantavam sobre o vídeo de Rudy. Se alguém tiver lembrança exata ou correção a fazer, será bem-vindo.
As imagens usadas no anúncio do Supertramp no Hollywood Rock 88 |
Vem Bloody Well Right e, mais uma vez, Scott Page e Fred Mandel mostram sua versatilidade e disposição. Mandel toca guitarra e oferece uma base, o que ajuda Roger a ficar mais solto, já que sola com o mesmo instrumento. Já Scott Page, sempre ele, começa tocando um sax (ainda fico na dúvida se baixo ou barítono), na introdução, e, logo depois, pega um tenor e se dirige à frente do palco, para fazer dueto com John Helliwell e vocais. Ele ganha mais espaço, pois também toca algumas linhas. Isso mostra como que seu som casou bem com a banda e, claro, como que John foi extremamente generoso, ao lhe conceder mais tempo em suas participações – no que Page corresponde acima do esperado. Os dois, aliás, dividem o mesmo tipo de bom humor. Com direito a piadas internas, pelo que se pode perceber (entradas nas músicas etc).
Toda a movimentação dos integrantes durante Bloody Well Right |
“It´s Raining Again não deve ter muita coisa diferente, de Scott ou Fred”, pensei. Ledo engano. Na primeira cena, em Munique, Page já me aparece com dois saxofones pendurados. Que ele toca em diferentes momentos da música. Na cidade alemã, aliás, foi uma das que mais contaram com participação do público, cantando e batendo palmas. O solo ficou por conta de Rick, na escaleta – o que, para mim, foi novidade, pois eu não sabia desse detalhe. Posso estar enganado, mas essa música ganha muito em expressividade, ao vivo. Muito mais do que a gravação do disco.
Put On Your Old Brown Shoes traz Rick ao Wurlitzer tocando o riff (do qual gosto muito) e, Fred Mandel, ao piano de cauda, fazendo a base e, na introdução, aquele som nas teclas mais agudas. Essa música me chamou a atenção. Porque a letra mostra, claramente, um recado de Rick para Roger. Dentro do vai e vem de farpas de ...famous last words..., me surpreendeu ver como que Roger dança, ao som dela. Isso é notável na banda. Não importava a mensagem da música (outras do naipe foram tocadas na turnê): na hora do show, na frente do público, o profissionalismo falava mais alto e a dedicação era total, para que tudo saísse bem.
Put On: Mandell ao piano, Bob com pandeiro e movimentação do público e da banda |
Em Put On..., John toca outra escaleta, para fazer o som agudo, bem presente, no início. Na primeira parte da música, Bob Siebenberg toca apenas pandeiro. Começa com a bateria logo a seguir. Confesso que eu não gostava de Put On Your Old Brown Shoes. Mas a versão ao vivo conquistou meus ouvidos. Ela ganha uma dinâmica e uma evolução muito boas, no palco. Scott toca sax e faz vocais auxiliares.
John permanece com a escaleta em mãos, pois é com ela que faz o solo da introdução de Hide In Your Shell. Simplesmente a música do Supertramp de que mais gosto, desde Paris e, principalmente, quando a vi, ainda na fita VHS, trazida pelo meu irmão. Tanto, que logo peguei o violão para tentar tocar. Depois, passei para o piano, dentro do arremedo de pseudo-talvez-quem sabe-conhecimento que eu tenho do instrumento. O fato é que, mesmo sem você saber da dramática letra, o drama começa já com a interpretação de Roger, ao vivo.
Aliás, sempre falam de Dreamer, como sendo um marco na forma de tocar teclado. Aquele toque constante, que marca a harmonia e o ritmo. E falam que Roger tentou repetir a fórmula em Lady (Crisis? What Crisis? – 1975). Entretanto, se percebi bem, em Dreamer, Hodgson apenas acelerou o que pode ser sua marca registrada, já que a mesma maneira de tocar pode ser observada em Hide e outras. Só que mais cadenciada.
Do show de Munique, alguns detalhes. Rick balançando a cabeça, ao som da música. É da época de Crime Of The Century, quando os dois ainda compunham juntos. Ao final da música, Roger empurra o suporte do microfone com a cabeça e desativa um botão do Wurlitzer, com uma expressão um pouco estranha. Talvez isso já fosse sinal do que aconteceria depois, em Fool´s Overture – mais abaixo.
Ao longo de Hide, aparecem os Trampettes, que nada mais são do que um grupo de roadies, talvez convidados ocasionais, que, fantasiados, farão a segunda voz em falsete, para o acompanhamento, já na parte final. Há desde pessoas com vestes normais, até fantasiados de palhaços e um Chewbacca – ou coisa que o valha. A ideia partiu de Roger, ainda na turnê de 1979, como um bom efeito visual e dinâmico. E, pelo humor, um contraste com a letra introspectiva da música. Os Trampettes aparecem em outros momentos, como em Fool´s Overture.
Qual não foi minha surpresa ao ver, no show de Munique, o público acompanhando, com palmas, a dramática e relativamente lenta Waiting So Long? Vale notar que ela vem após Hide In Your Shell, que não é exatamente animada. Na segunda estrofe, as palmas diminuem, mas, como a música ganha um ritmo mais marcante, elas voltam. Ao longo de sua execução, a guitarra de Roger, com efeito bem pesado e em volume alto, vai ganhando presença, acrescentando dramaticidade, até que explode num solo de dois dos mais belos minutos da música pop. Mais uma vez, Roger se mostra como que desabafando, jogando para fora algo que ele queria falar, mas que acaba expressando pelas notas. Scott o acompanha muito bem, marcando a intensa base com fraseados precisos.
E vem Give a Little Bit. O grande hit de Crisis? Roger escolheu este momento para, em cada show, marcar o anúncio de sua saída. O que pode ter confundido muita gente, no vídeo do show de Munique, foi ele ter dito que, 14 anos antes, ele fez sua primeira apresentação com a banda (ainda sob o nome Daddy) exatamente ali, em Munique. E que, novamente naquela cidade, ele fazia, naquela noite, seu último show com o Supertramp. Por muito tempo, eu também pensei assim. Mas a internet nos trouxe mais informação, assim como o acesso a livros e itens de memorabilia. Aliás, programa e diversos sites mostram, não só que haveria mais shows, nos EUA e no Canadá, como precisou ter um no dia seguinte, na mesma Munique, dada a grande procura por ingressos (que não consta no roteiro de shows do programa). E, devido ao já citado profissionalismo, a banda está perdendo um de seus principais integrantes, deixando todos incertos de seu futuro, como Supertramp, e, no caso de Roger, como artista solo, mas apresentando um show perfeito.
Em From Now On, mais uma mostra do quanto a versatilidade de músicos convidados pode melhorar o que já é muito bom. Nas turnês anteriores, John fazia o solo com sax tenor e acompanhava o de guitarra com sax alto (vide o DVD de Paris). Aqui, ele e Scott fazem um duo de escaleta, para acompanharem o solo de Roger, em sua guitarra de dois braços (utilizada apenas nesta música).
From Now On: John divide escaletas com Scott, enquanto Roger toca a double neck |
Em The Logical Song, novamente Scott reproduz um arranjo do disco, que não era feito ao vivo por Roger, até então, por este sempre estar ao teclado: o acompanhamento da guitarra, no refrão e em algumas outras partes. Interessante notar que, em Toronto, ele fala, antes da música: “Àqueles que estão por aí, perguntando o que, afinal, está acontecendo”. Não sei a razão dele ter dito isso. O fato é que a forma como ele tocou, na cidade canadense, foi bem mais incisiva.
Goodbye Stranger foi uma música que conheci vendo o show de Toronto. Estranhei, mas gostei. E Roger vem com mais um de seus solos exatos e altamente criativos. Mais uma vez, Scott o acompanha na guitarra. No solo, pega o pandeiro. Vou evoluir essa observação em outro post, sobre Roger e a guitarra. Mas é de se notar que, em determinado momento do solo, logo no início, ele começa com um dedo num traste e troca de dedo, mantendo a nota. Guitarristas normalmente exaltam essa técnica, quando utilizada por Steve Vai, em uma de suas composições. Posterior a Goodbye, talvez? Claro que eu me pergunto sobre onde que Roger viu essa forma de tocar ou se tentou por si próprio. De qualquer maneira, é notável e não muito vista. Aliás, o arranjo para o final de Goodbye foi outro que ficou muito bom, já que, em estúdio, termina em fade out.
Em Toronto, antes de Dreamer, eu destaco a brincadeira de John Helliwell: Ele se senta ao Wurlitzer e começa a tocar a famosa introdução. E não sai dela. Até que Scott e Fred aparecem, como que ao comando de Roger, e retiram o saxofonista do assento. Este, num bem-humorado e perfeito timing, simulando um ímpeto de resistência, ainda dá um último toque aleatório no instrumento. Roger ri e pergunta à plateia: “Vocês querem ouvir a versão correta? Okaaay!” O público se amarrou!
John fingindo começar Dreamer e sendo retirado, enquanto Roger dá risada |
Rudy vem a seguir, com toda sua magnitude, mudanças de andamento, tom, casa, apartamento e tudo o mais que puder. O vídeo do trem acrescenta a tensão que já reina, na instrumentação da parte em que é projetado. Mais uma vez, Scott toca guitarra, acompanhando Roger, enquanto este executa as partes de maior destaque, na ponte. Se repararmos bem, a base que ele faz acrescenta muito à música. Fred permanece nos teclados.
A épica Fool´s Overture começa com uma melodia bem simples, ao piano. Esta primeira parte termina da mesma forma, discreta. A seguir, muda completamente, passando pelo discurso de Winston Churchill (“We will never surrender!”) e seguindo até seu famoso riff, que foi a parte que mais me impactou, quando a ouvia, ainda criança – sem sequer saber que havia o Supertramp. Antes de tocá-lo, porém, uma rara manifestação de Roger, em direção à plateia, em resposta ao burburinho, que sempre precede essa parte.
Aqui, uma observação aleatória - e totalmente sem linguajar musical exatamente técnico: esse riff é genial. Mas a preparação foi que sempre me chamou a atenção. Porque esta parte, tocada nas notas baixas, que anunciam a sequência principal, é iniciada, não na nota mais grave, digamos, o que seria usual. É na mais alta. Sutileza vital, eu diria. O baixo de Dougie faz um acompanhamento simplesmente espetacular! A bateria de Bob idem. Os dois embarcaram na ideia de que, mesmo numa peça tão única, menos pode ser mais.
Assim que John Helliwell começa seu primeiro solo, uma cena para a qual eu não tinha atentado. Tudo porque, quando comprei o DVD de Munique, estava numa fase de deixar rolar e fazer coisas de trabalho. Graças ao pessoal do site consultoriadorock.com, pude ver essa cena mais do que marcante: Roger chora. Roger simplesmente passa a mão no rosto umas quatro ou cinco vezes, enxugando lágrimas. Penso em tudo que está pela cabeça dele. Foi em Munique, sua primeira apresentação com o Supertramp. E aquela seria sua última vez com o Supertramp, na mesma cidade. Disso que eu falei, em Hide In Your Shell. Dessas sensações. E tudo aflorando em pleno show, em diversos momentos.
Fool´s Overture me tirou algumas dúvidas, que passei a ter após ouvir Paris. Coisa simples, sobre quem estava tocando qual teclado. Dessa segunda parte em diante, então, Rick assume o piano, e Roger permanece a bordo do sintetizador ELKA. Na parte cantada, para minha surpresa, Hodgson não toca nenhum instrumento.
A música segue seu curso, até desaguar na parte cantada final. Aí, mais detalhes: Rick passa do piano para o sintetizador Oberheim, Scott divide microfone com John, ambos com clarinetes (Fred está aos teclados) e, mantendo a tensão, Dougie e Bob não desembestam em desabalada carreira, o que seria natural, já que a música entrou em um momento mais forte. Permanecem com a mesma tocada de antes. Ou seja: a música atinge seu ápice, quer “correr”, mas eles demoram a mudar a marcação. “Prendem” a canção. Essa tensão dá um desenho mágico a toda a composição.
Como tradicionalmente ocorria, o acorde final conta com a encenação de John sendo um maestro e comandando a bateria de Bob, com todos esperando o sinal do saxofonista, para finalizarem a consagrada Fool´s Overture. E a primeira parte do show. O bis viria a seguir.
Fool´s: Roger interage, chora e, ao final, John encerra a música, como um maestro |
Tanto em Munique, quanto em Toronto, a volta para o bis é festiva. Todos gesticulam bastante para a plateia. Inclusive Rick, ainda que de forma mais contida. Ele é assim. Mais tímido. Mais introspectivo. Roger agradece em alemão: “Munique! Alemanha! Bavaria! Fantástico! Fantástico!”.
E a gaita de Rick anuncia School. Que tem seu começo modificado, como pode ser visto nos dois shows. A guitarra de Roger entra um pouco antes. Mudança sutil, mas que mexe com a dinâmica da música. As presenças de Fred e Scott são fundamentais, em School. Os arranjos ficam muito mais ricos, com John e Rick tendo mais liberdade, por exemplo. E Page se mostra um verdadeiro operário.
No primeiro solo de piano, Fred, que já tocava a guitarra, com ela ainda a tiracolo, ocupa o Wurlitzer, até então com Rick. Que vai para o piano. E ambos tocam o solo, em uníssono. Enquanto isso, Scott, que tocava saxofone, segue com o instrumento até John, já levando a flauta. Ele a toca, enquanto John toca o saxofone. Em Paris, vemos John tocando o sax alto (salvo engano) ou sax. Ou seja: sem mais opções, era um ou outro.
Quando chegam nos versos “Don´t do this, don´t do that”, ambos tocam sax, o que reforça os graves do piano de Rick e da guitarra de Fred (já de volta ao seu lugar), enquanto Roger foca em efeitos com distorção e wah-wah. Logo depois, Scott deixa os sopros e assume o vibraslap*, instrumento de percussão. Resumindo: em pouco tempo, Fred tocou guitarra, assumiu o Wurlitzer e retornou ao seu local, novamente com as seis cordas. Já Scott, em menos de um minuto, tocou três instrumentos, também se deslocando pelo palco. Impossível, assim, não sugerir que se compare as execuções de School em Paris com as de Munique e Toronto e ver como a canção ganhou força além da que já tinha, naturalmente.
A saga de School, com grande movimentação de Scott, com o vibra slap, abaixo, à direita |
E chega o apoteótico final do show, sempre com Crime Of The Century. A curta letra resume todo o espírito do álbum de mesmo nome, cujas canções permearam todos os shows do Supertramp – revolta contra o sistema escolar, político e social. Sintomaticamente, todos os shows tiveram, ao menos, quatro músicas do disco que representou a virada da carreira da banda. Que deu a seus músicos, à época e já na formação clássica, o respeito, a fama, já algum dinheiro e, mais importante, a demanda por mais e mais shows.
O vídeo de Munique mostra Rick sentado ao piano, observando as teclas, por longos dois ou três segundos. Até que, sutil e gentilmente, toca a primeira nota. Seguem-se os primeiros acordes e versos. A plateia vibra. Como se ninguém ali soubesse o que viria. É o impacto que essa música gera. Implacável. A música se desenvolve. Ganha corpo. Fred toca guitarra. John completa a base no Oberheim.
Não vejo Scott. Deve ter ido fazer um café. Impossível, ele ficar sem fazer algo.
Quando começa a repetição do riff clássico do piano, o vídeo começa a ser projetado. À grade, da capa do disco Crime, está ligada a corda da capa de ...famous.... Secamente cortada pela tesoura, da mesma arte. Se, no início do show, tínhamos o malabarista sobre a mesma corda, também seccionada pelas lâminas, para que tudo começasse, aqui, o corte finaliza a apresentação.
O que nos dá a certeza de que, ao menos em vídeo, dificilmente teremos a imagem com a saudação final dos músicos. Porque sempre a projeção do vídeo toma a tela.
Cenas do vídeo do final de Crime Of The Century |
Se minha opinião valesse para alguma coisa, diria o seguinte: o Supertramp perde em não lançar oficialmente esses dois shows. Ou, no mínimo, uma compilação, sob o nome de Turnê 1983, ou algo que o valha. Porque a performance da banda é simplesmente estupenda! Por tudo isso que mal e longamente escrevi – espero que não prolixamente. Tenho a certeza de que, apesar de ser o canto do cisne da formação clássica da banda, foi seu auge ao vivo. Não só pelos músicos originais já estarem mais do que afiados, mas pela escolha certeira de seus dois convidados. Tudo ficou mais rico: desde o bom humor no palco, que certamente ajudou a dissipar um pouco do tom de despedida e tal, até a execução das músicas, cujos arranjos originais foram amplamente explorados e extremamente enriquecidos.
Deixar esse material (áudio e vídeo) fora do alcance do público, sem ser disponibilizado, de forma bem trabalhada e oficial, é tiro no pé. E, de tiro no pé, já bastou a separação da banda. Nem Roger experimentou o mesmo êxito, em sua carreira solo (ainda que diga que não vise apenas isso), nem o Supertramp repetiu seu sucesso de outrora. Ao contrário: lançamento após lançamento, a banda se tornou o grupo de acompanhamento de Rick, para suas músicas. É duro, afirmar isso. É difícil. Sou muito fã da banda. Mas é a realidade. Assim, se não teremos mais a reunião do grupo original, para novos trabalhos, que preciosidades sejam disponibilizadas oficialmente, para saciar o público, sempre ávido por lançamentos, e manter a chama da banda acesa. Afinal, como se diz entre os fãs de outras bandas dos anos 60/70: ninguém fica mais novo nessa história.
Outro dos diversos pôsteres da turnê de 1983 |
* Vibraslap - Baseado no secular instrumento utilizado a partir do osso da mandíbula de animal, geralmente a do cavalo, o Vibraslap é um instrumento de percussão constituído por um pedaço de metal semi-rígido (dobrado em forma de U), que liga uma bola de madeira a uma caixa oca de madeira com "dentes" de metal no interior. O percussionista segura a estrutura de metal em uma mão e golpeia a bola (geralmente contra a palma da outra mão). A caixa funciona como um corpo de ressonância de um mecanismo de metal colocado dentro de um número de pinos ou rebites vagamente presos que vibram e chocalham contra a caixa. O instrumento é uma versão moderna do maxilar.
O Vibra-Batida foi a primeira patente concedida à empresa de fabricação de instrumentos de percussão latina (Latin Percussion).
O vibraslap: segura-se pela dobra da haste metálica e bate-se na esfera |
O inventor do Vibraslap foi Martin Cohen. Cohen foi orientado pelo percussionista Bob Rosengarden: "Se você quiser fazer algum dinheiro, faça uma mandíbula que não quebra." Sobre o processo de inventar Cohen lembra: "Eu nunca tinha visto um maxilar antes, mas eu tinha ouvido falar de um em um Cal Tjader álbum. Descobri que era um crânio de animal que você iria atacar, e o som que vem dos dentes chocalhava nas partes soltas. Então eu peguei esse conceito e inventei o Vibraslap, que foi a minha primeira patente”.
Você pode ouvir o vibraslap na introdução de Sweet Emotion, do Aerosmith, e em diversas outras músicas do pop-rock.