sábado, 22 de abril de 2023

1983: Supertramp e sua ...famous last tour...

  por Luciano Teles



 
Capa do programa da turnê 83


A turnê de 1983 foi a última do Supertramp, com sua formação clássica. Rick Davies (teclados, voz e harmônica), Roger Hodgson (teclados, guitarra e voz), John Helliwell (saxofone, outros metais e vocais), Dougie Thomson (baixo e voz) e Bob Siebenberg (bateria) se apresentaram 64 vezes, em 46 cidades. A partir daí, Roger Hodgson e o restante do grupo seguiriam caminhos separados. E não voltariam a se reunir.

No entanto, falar sobre essa turnê não é simples. Não é apenas pegar o programa, ler sites com as informações a respeito e ver o que estava planejado para acontecer e como tudo correu, entre 1º de junho e 24 de setembro de 1983. Como definir um período de quatro meses, em que um integrante (Roger) anunciava, em cada show, que deixaria o grupo, ao final da tour? Ele até falava que “havia muita música boa a vir, de todos nós” e tal. Mas a ruptura estava exposta. Assim, é de se pensar: Como estava o ambiente no grupo e entre as pessoas que o acompanhavam? Como estava a relação entre o próprio Hodgson e o outro principal compositor e cantor do Supertramp, Davies?

Datas iniciais da turnê. Datas extras foram agendadas


 A frase que me veio foi a óbvia “dormindo com o inimigo”. Porque “Sleeping With The Enemy “ chegou a ser o título do primeiro disco solo de Roger Hodgson. Foi mudado para In The Eye Of The Storm. Que podia não ser tão pesado, mas mostrava o quanto a saída dele foi traumática e com sentimentos totalmente misturados. O ainda chamado Sleeping With The Enemy foi gravado entre o lançamento de ...famous last words... (grafia correta do nome) e a turnê de 1983. Ou seja, entre outubro de 1982 e maio de 1983.

Sim: a turnê de 1983 foi a última com Roger Hodgson. Mas os desencontros entre ele e Rick Davies já vinham ganhando corpo desde meados da década anterior. Na verdade, ainda durante a composição e gravação do álbum mais famoso e elogiado da banda: Crime Of The Century (1974). O sucesso deste gerou uma série de compromissos e shows tal, que simplesmente dificultou que o próximo, Crisis? What Crisis? (1975), fosse composto e gravado num processo normal. Acabou reunindo material não lançado em Crime Of The Century. A parceria na composição, no entanto, já tinha acabado. Segundo o próprio Hodgson, assim como Lennon/McCartney, depois de um tempo, cada um escrevia e cantava suas composições. Apenas assinavam juntos.

Aliás, essa comparação é muito comum. Eu concordo e a levo adiante: tal qual John, Roger escrevia quase que apenas sobre si mesmo, seus sentimentos do momento, dramas humanos e o que ele pensava a respeito do mundo e de seu tempo. Ainda: com muito de George Harrison, pois Roger também passou a dar importância às questões espirituais. E, claro, a paz na Terra e aos homens de boa vontade. Assim, temos Dreamer, The Logical Song, Babaji, Hide In Your Shell, Give A Little Bit e tantas outras. Já Rick gostava de escrever sobre qualquer coisa. Bem parecido com Paul McCartney. Fosse sobre alguém, algo do cotidiano ou alguma situação, ele sabia colocar em palavras todo o cenário que queria passar. Dessa facilidade, vieram Rudy, Gone Hollywood, Lover Boy e From Now On, por exemplo.

 
Textos do programa da turnê 83


Os estilos musicais dos dois também eram bem distintos, da mesma forma que Lennon e McCartney. É lógico que não podemos dividir tudo matematicamente, nem cravar que isso ou aquilo seja 100% de um jeito. Mas podemos elaborar um pensamento a respeito. Mesmo bem chegado num progressivo, Rick Davies é como John: gosta de blues e um rock and roll básico. Além de jazz e R&B. E sabe mandar umas baladas cujo lirismo é de uma beleza tão tangível quanto pungente. Isso o fez nos brindar com Ain't Nobody but Me, Another Man's Woman, Goodbye Stranger, Blood Well Right, Crime Of The Century, Bonnie e Downstream.

Já Roger Hodgson se joga no pop de roupa, mochila e tênis. Também gosta de baladas e usa e abusa de seus dotes de (excelente) violonista e guitarrista, tecladista e baixista – seu primeiro instrumento, no início da banda. Claro: o Supertramp não seria considerado um grupo de progressivo pop, se ele também não se embrenhasse pelo estilo mais elaborado. Com isso, nos presenteou com Even in the Quietest Moments, School, A Soapbox Opera, Two Of Us e a épica Fool´s Overture.

Parte disso pode ser confirmado em uma das matérias disponíveis no site de Bob Siebenberg – aliás, recomendo leitura dos sites dele, de Roger e de John. Em uma entrevista transposta do fansite The Logical Web, dedicado à banda, de dezembro de 2019, ele respondeu a várias perguntas dos fãs. Sempre muito metódico sobre o que fala – o que pode ser verificado em outros textos. Bob define bem os dois principais compositores do Supertramp, quando perguntado sobre qual deles era uma força para a banda:

“Roger era brilhante no acústico. Know Who You Are e Even In The Quietest Moments... Acho que isso era o que nos separava do restante das bandas, nos 70s. Ele também tem o dom de ser um excelelente compositor comercial. Nenhuma conotação negativa nisto. É um dom. E ele tem essa capacidade. Suas letras podem ser bem profundas e instigantes. Rick era mais terreno e fácil de se identificar com suas letras. Ele escrevia sobre o cotidiano. E também podia ir bem fundo. Ao piano e órgão, soberbo, fabuloso. Bem poderoso e direto. Eu sei que eles escreviam separadamente. Eu estava lá. Mas o que um ofereceu para as músicas do outro foi significativo e especial” – conclui, tão certeiro, quanto diplomático. Postura da qual não discordo em nada.

Textos do programa da turnê 83


Resumindo, dois talentos diferentes e diferenciados, que, juntos, eram uma máquina de composições certeiras. Porque, ainda que escrevessem em separado, até com certa disputa, um acabava sugerindo arranjos nas músicas do outro. E a vida seguia. Em ...famous last words..., a coisa já não foi bem assim. Mas, para falar do último trabalho com Roger, temos de voltar algumas casas. Ou alguns discos. Porém, isso é assunto para o próximo post, específico sobre o disco.

A organização da turnê não se deu de forma tão natural, como normalmente seria, num processo de divulgação de trabalho novo. Havia a intenção de se comemorar dez anos daquela que foi a formação definitiva do Supertramp. E, com a iminente saída de Roger, passaram a tratar aquela como uma turnê de despedida dele. Adicione-se a esta novidade, o fato da última aparição da banda, perante a mídia e público, ter sido já há praticamente três anos. Ou quatro, se considerarmos que, em shows, foi na turnê de 1979. Em disco, no lançamento do ao vivo Paris, em 1980.

Aqui, vale destacar uma apreensão da banda: será que o público ainda se lembrava deles? A pergunta pode parecer absurda, atualmente. Porém, em tempos sem internet, sem interação instantânea com o artista ou seu staff, em tempo real, sem redes sociais ou nada do que se conhece hoje, a divulgação de um trabalho passaria pelo seguinte roteiro: gravação, entrevistas, lançamento de disco, entrevistas, aparição em programas de TV e rádio, shows, matérias em jornais e revistas, mais shows, mais entrevistas etc. Até um pouco depois que a turnê acabasse. Se dela fosse originado um disco ao vivo, um novo processo do tipo se desenrolaria. Mas não muito longo. Ou seja: dentro desse quadro, com notícias esparsas – em revistas sobre instrumentos musicais, por exemplo -, num intervalo de três ou quatro anos de “silêncio”, a dúvida era mais do que justificada.

 
No palco, a garçonete Libby e a banda recebendo discos de ouro e platina


Outras observações são válidas: geralmente, quando um grande artista ou grupo anunciava uma turnê, o mundo dos fãs parava. Começava-se um processo de busca por informações e, principalmente, ingressos. Comprava-se todos os jornais e todas as revistas. Os programas de rádio e TV ganhavam maiores índices de audiência. Uma parte de tudo isso ainda se repete ou se viu a até bem pouco tempo atrás: vai passar em quais cidades? Vou precisar me deslocar? Como comprar ingressos, se o show não vai acontecer aqui? Onde ficar? Ou seja: morando, ou não, numa cidade que sediasse um desses shows, a compra de ingressos originava filas quilométricas, com pessoas morando nas ruas, praticamente. A frustração vinha quando grandes shows tinham seus ingressos vendidos em questão de horas. Numa época em que a transmissão ao vivo e exibição de especiais dos shows eram raras, nada mais desanimador.

Mas há um outro lado desse cenário, que as pessoas podem não ter se tocado de ter desaparecido: a cobertura pela imprensa local. Fosse para um show próprio ou dentro de um festival, os artistas chegavam, davam uma entrevista coletiva, uma ou outra exclusiva e um material local seria produzido. Fosse na capa de algum caderno cultural de jornal ou de alguma revista do ramo, num programa de rádio ou TV, o fã teria a sua disposição matérias feitas por jornalistas locais, em seu próprio país ou até em sua cidade. Hoje em dia, praticamente tudo é pescado das redes sociais. E nem sempre é o próprio artista que posta. Muitas vezes, é algum assessor. Não que isso gere informações falsas ou algo do tipo. Mas perdeu-se uma ponte que, ao meu ver, era bem interessante. Enfim, perdas e ganhos das eras tecnológicas que se seguem.

Voltando à turnê, comecemos pelo programa. Seguindo a linha de lembrar dos dez anos da formação clássica, lembrar de histórias da banda, ao longo desse tempo, foi uma excelente ideia. Deu uma leveza necessária ao projeto.

 
A icônica foto da capa interna do LP Paris e Rick em raro momento de extroversão


Os relatos começam no verão de 1973. Depois de quatro anos e dois álbuns lançados, com diferentes formações, Rick e Roger tinham angariado reconhecimento de parte da crítica, mas nada de sucesso comercial. Daí, veio um dilema natural, já que “money, que é good, nós num have”: parar ou tentar mais uma vez?

Escolheram continuar. Depois de intermináveis audições, encontraram em Bob Siebenberg, Dougie Thomson e John Helliwell a formação ideal. O resto é história: no final daquele ano, se recolheram numa casa, em Shouthcombe, Somerset, na Inglaterra, e começaram os trabalhos. Rick e Roger escreviam e a banda ensaiava. O trabalho originou o clássico disco Crime Of The Century, sob a produção de Ken Scott. E o som do Supertramp ganhou corpo de vez.

Na continuidade do texto inicial, a descrição daqueles primeiros tempos na estrada: Uma noite, o carro no qual John, Rick e Bob iam ao show simplesmente se incendiou. Eles conseguiram chegar ao local. O carro não. Indo para outra apresentação, em Oslo, Noruega, o ônibus que levava a banda e “toda sua equipe” (4 pessoas) e equipamento, encalhou na neve. E fazem a clássica piada: “Dizem que ainda está lá”. Em alguns shows, o público era escasso. É quando entra a famosa história contada na foto interna da capa do disco Paris: Numa comparação, em 1979, lotaram quatro noites, com 40 mil pessoas. Mas, naquele início, apenas oito pessoas foram ver um show deles. Das quais, seis tiveram o ingresso comprado e cedido pelo empresário da banda...

 
Sim, a banda se divertia. E muito!


Mas tudo deu certo: Crime Of The Century alcançou o primeiro lugar nas paradas britânicas. A turnê pela Europa também foi um sucesso. Então, resolveram se aventurar pelos Estados Unidos e Canadá. Cidade após cidade, foram angariando público, sendo reconhecidos e, no início de 1975, o Supertramp recebia seu disco de ouro pelo álbum. O primeiro de muitos.

Continuam as recordações e citam fatos das gravações de Crisis? What Crisis?, em 1975. Começaram em Los Angeles – com a banda esperando pela recuperação de Roger, que havia fraturado o braço. Foram finalizadas em Londres. Nova tour mundial nos planos, o Supertramp resolveu incrementar seu equipamento de luz e som de palco, também incorporando exibição de filmes. A equipe de apoio, que já não era exatamente de apenas quatro integrantes, foi carinhosamente apelidada de Supertramp Army. E todos saíram para a ambiciosa turnê de oito meses. A banda brinca com o fato de serem interessantes o suficiente para o tablóide londrinho The Sun colocá-los em páginas de destaque.

A turnê de Crisis? rodou dois meses pela Inglaterra e Europa. Nesse meio tempo, Rick tirou sua tradicional barba. No show a seguir, John Helliwell (sempre o mestre de cerimônias) o apresentou como “O Turco”. Para as matérias trazerem, no dia seguinte: “O pianista turco é muito bom!”. Novamente, após a Europa, foram aos EUA e Canadá. Depois, tiveram disposição para irem ao Japão, Austrália e Nova Zelândia.

 
A partir da esquerda: testando repertório novo, junto à mesa de controles e em frente ao estúdio


Em 1976, os integrantes se mudaram de vez para a Califórnia. Mas escolheram gravar o próximo disco no estúdio Caribou Ranch, nas montanhas nevadas do Colorado. Depois de três meses, voltaram a Los Angeles e mixaram o álbum, com os engenheiros de som Geoff Emerick (Beatles) e Pete Henderson, no Record Plant. Mas a equipe de apoio voltou ao Caribou. Eles tinham de arrastar um piano de cauda até um lugar, no topo da montanha, após uma tempestade de neve, para fotografarem a capa do já intitulado Even In The Quietest Moments.

 
Caribou Ranch: piano fora e a capa pronta


Mais uma vez, uma massiva turnê os aguardava. Seriam 130 cidades nos EUA, Canadá, Europa e Inglaterra. Em seu país natal, a banda estreou, no Wembley Arena, o palco já decorado com o que viria a ser a marca registrada da banda: o guarda-sol amarelo. Turnês eram mais do que trabalho duro, agora: eram um meio de vida. Com seus momentos engraçados, é bem verdade. Principalmente no palco, com John incrementando seus adereços, óculos a la Elton John, vestimentas e repertório de piadas.

O programa termina este trecho ressaltando que parecia que o Supertramp tinha alcançado algo com o que nunca havia sonhado, nos dias iniciais.

Mas ninguém imaginaria o que ainda estava por vir.

O que estava por vir era o absoluto sucesso de Breakfast In America. Um disco sobre o qual pouco precisa ser falado, reconhece o texto do programa. Tomou o mundo de assalto, com canções com base nas impressões de uma banda inglesa (apesar de seu baterista californiano) que se muda para Los Angeles. O disco subiu ao número 1 rapidamente. Disco de ouro foi seguido pelo de platina e as vendas terminaram superando os 16 milhões de unidades, no mundo todo. Por curiosidade, chequei a população da Inglaterra, em 1979. Era de cerca de 46 milhões de habitantes. Ou seja: proporcionalmente, se as vendas fossem concentradas no país bretão, era como se um a cada três indivíduos tivesse comprado o disco. Não é pouco.


O programa traz as fotos para a capa de Crisis? O guarda-sol amarelo foi aberto na história da banda


O programa descreve a capa e a arte de Breakfast In America. Destaca a icônica garçonete “Libby”, posando como a Estátua da Liberdade - na verdade, a atriz Kate Murtagh (29 de outubro de 1920 – 10 de setembro de 2017). Entre as descrições dos trabalhos dos vários fotógrafos envolvidos, é mencionada uma aposta de 100 dólares, entre Rick e Bob, com o primeiro certo de que o Breakfast In America não atingiria os cinco primeiros lugares nas paradas norte-americanas. Que foram animadamente pagos, depois de um show no Madison Square Garden, Nova Iorque, onde receberam seu primeiro disco de platina.

A turnê de Breakfast reuniu 52 toneladas de equipamento (totalizando US$ 5 Milhões), 16 quilômetros de cabos e uma equipe de 40 integrantes. Quebrou todos os recordes de público em shows, na Europa e Canadá, e tomou as manchetes dos jornais, sempre recebendo elogios superlativos, consolidando a fama da banda em promover shows espetaculares. Depois de dez meses de turnê, um breve descanso e já tinham um novo trabalho, já em 1980: preparar, lançar e divulgar Paris, o disco ao vivo, gravado no Pavillon da capital francesa, durante uma temporada de quatro noites no local.

 
Canadá, então a maior base de fãs do Supertramp


Finalmente, no final de 1981, começaram os preparativos para ...famous last words... O programa, claro, é bem diplomático em seu texto. Apenas cita que foi basicamente ensaiado nos estúdios de Rick e gravado, em sua maior parte, nos estúdios de Roger. As irmãs Wilson, Ann e Nancy, da banda Heart, gravaram backing vocals em duas canções. A banda testou alguns números novos numa apresentação, num clube do norte da California. E gravou vídeos para My Kind Of Lady e It´s Raining Again. Já, na época, um recurso importante e mais utilizado, para divulgação musical. O primeiro foi bem mais elaborado, com a banda toda paramentada como músicos dos anos 50 – devido ao estilo da música. O segundo, com cenas ao ar livre, em ônibus e mais leve, não demandou tanta elaboração, apesar de também ter ficado muito bom.

Foto do disco Breakfast In America



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